09/11/2007 - 16:06

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Disputa bilionária envolve depósitos judiciais no país

Disputa bilionária envolve depósitos judiciais no país

 

 

Do Valor Econômico

 

09/11/2007 - O destino de bilhões de reais decorrentes de depósitos judiciais pertinentes ao Estado levou à primeira querela do ano entre as cúpulas regionais dos Poderes Executivo e Judiciário. De um lado, governadores interessados em utilizar esses recursos tanto no pagamento de dívidas resultantes de condenações da Justiça, os chamados precatórios, quanto para investir em outras áreas. De outro, desembargadores que consideram esse montante pertencente aos tribunais e questionam a legalidade da atitude dos governantes ao tomar recursos originados do exercício da função jurisdicional. Além disso, reclamam dos constantes contingenciamentos promovidos pelo Executivo no Orçamento do Judiciário.

 

Amparados por uma lei federal publicada em dezembro de 2006, que autorizou os Estados a utilizar 70% desses recursos exclusivamente para o pagamento de precatórios ou da dívida fundada, os governadores começaram a baixar suas próprias normas regulando o assunto. O primeiro deles foi o paulista José Serra (PSDB), que, via decreto assinado em 7 de março, começou a utilizar esses fundos. Dos R$ 12,6 bilhões de depósitos existentes no Estado, R$ 1,9 bilhão se referem a ações judiciais em que o Estado participa como autor ou réu. Desse valor, até a primeira quinzena do mês de outubro foram transferidos para a Fazenda Estadual R$ 92,7 milhões, com o objetivo de pagar precatórios.

 

Para levantar esses fundos, tanto a lei federal quanto o decreto determinaram que a Secretaria da Fazenda apresentasse ao TJ um termo de compromisso que garanta a criação de um fundo de reserva cujos valores não sejam inferiores a 30% desses depósitos. O objetivo do fundo é assegurar o levantamento dos depósitos judiciais pelas pessoas quando cessarem as ações na Justiça. O secretário de Fazenda, Mauro Ricardo Costa, apresentou-o ao tribunal no dia seguinte ao decreto.

 

Quase seis meses depois, porém, Serra encaminhou à Assembléia um projeto de lei ampliando a destinação dos depósitos para, além do pagamento de precatórios, "investimentos e informatização do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, obrigações de pequeno valor, segurança pública, sistema penitenciário, reforma e construção de fóruns e estradas vicinais". No texto do projeto, não há qualquer menção à apresentação de termo de compromisso entre o Palácio dos Bandeirantes e o TJ-SP. Rafael Barroso, assessor técnico da Fazenda, deu a justificativa: "Para o primeiro fundo a gente fez o termo de compromisso com o Judiciário porque a lei federal mandou que a gente fizesse. No segundo não tem porquê. Não há essa disposição no projeto de lei que o Executivo mandou para a Assembléia", afirmou.

 

O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi, desconhecia que esses recursos já estavam sendo utilizados. E critica a proposta. "Não acho bom. É um dinheiro tirado de causas em que o Estado é parte e a gente não sabe se o Estado tem razão ou não. E, se ele não tiver razão, e ele sabe muitas vezes que não tem razão, vai aproveitar-se desse dinheiro. Vai procurar, por exemplo, se for réu, procrastinar essas ações para um futuro mais distante possível e não vai cumprir sua obrigação de pagar. Isso é uma coisa séria, por isso já fico preocupado com uma medida dessa".

 

Na Assembléia, o projeto de lei já está na ordem do dia, mas a deputada petista Ana Perugini apresentou um substitutivo, sob a alegação de que falta maior transparência na utilização desses depósitos pelo Executivo. "O projeto não segue os critérios da lei federal e nem da própria Constituição Estadual, que veda a instituição de fundos de qualquer natureza sem prévia autorização legislativa", diz. Para Barroso, da Fazenda estadual, não há ilegalidade: "A Constituição fala em prévia autorização legislativa. A Constituição não diz se cada Estado tem que pedir autorização do seu Legislativo. A lei federal já deu essa autorização. Estamos amparados por essa lei." Em Minas, o governador do Estado, Aécio Neves (PSDB), também baixou um decreto para ter acesso aos recursos dos depósitos, mas, segundo a Secretaria da Fazenda mineira, "está faltando um 'de acordo' do TJ, por isso o fundo "não está sendo operacionalizado".

 

Problema semelhante entre Poderes ocorre no Pará, com a governadora Ana Júlia Carepa (PT). Em julho, ela conseguiu aprovar uma lei que autoriza a utilização desses recursos judiciais para, além do pagamento de precatórios e da dívida fundada, "despesas de capital destinadas às áreas fundiárias e ambiental". Ciente da aprovação, a presidente do Tribunal de Justiça do Pará, Albanira Bemerguy, contestou a norma e encaminhou a questão ao Colégio Permanente de presidentes de Tribunal de Justiça, em Brasília, listando o que avalia serem inconsistências legais na medida. "O valor depositado pelo contribuinte para fazer uma discussão na Justiça acaba sendo utilizado por um terceiro", afirma a desembargadora, que reunirá na quarta-feira o órgão pleno do tribunal (composto por todos os desembargadores) para avaliar qual medida irá tomar. "Acredito que iremos entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade", diz.

 

No Rio Grande do Sul, a governadora Yeda Crusius (PSDB) encaminhou à Assembléia um pacote de medidas para tentar sanar a crise econômica do Estado. Inclusive a que cria o Fundo Estadual dos Precatórios, que prevê a utilização de metade dos R$ 70 milhões referentes aos rendimentos líquidos que o Tribunal de Justiça tem com os R$ 2,6 bilhões de depósitos judiciais.

 

Inconformado com o projeto, o presidente do Tribunal de Justiça gaúcho, desembargador Marco Antonio Barbosa Leal, iniciou uma peregrinação pelo Estado para sensibilizar as bases dos deputados estaduais no sentido de pressioná-los a excluir essa fonte de recursos do Fundo. "A governadora não conversou nada com a gente, absolutamente nada. E quer tirar R$ 35 milhões dos nossos recursos para pagar uma dívida de precatórios de mais de R$ 3 bilhões. Isso é nada. Desveste um santo para deixar o outro desnudo", afirma.

 

De acordo com ele, o Judiciário gaúcho se mantém com os rendimentos dos depósitos, investindo na construção, reforma e ampliação dos foros. Como saída, Leal apresentou ao secretário da Fazenda e ao chefe da Casa Civil a proposta de fazer uma força-tarefa para cobrança da dívida ativa do Estado, hoje, segundo ele, avaliada em R$ 16,5 bilhões: "Há 130 mil processos de cobrança dessa dívida. Se juntarmos juízes, Ministério Público e Fazenda, avaliarmos de quem é possível cobrar, creio que possamos levantar, em um cálculo pessimista, 10% desse valor. Seria cerca de R$ 1,5 bilhão para o fundo dos precatórios".

 

 

Recursos em juízo aproximam desembargadores e bancos

 

Os lucros obtidos pelos bancos com os mais de R$ 70 bilhões de depósitos judiciais existentes no país despertaram no Judiciário o interesse de também ter sua parcela de rendimento com o negócio e acabaram por estreitar as relações entre desembargadores e o sistema financeiro. A alta rentabilidade advém do fato de serem depósitos que permanecem retidos por anos devido à lentidão da Justiça e terem um custo baixo aos bancos oficiais, os únicos, segundo a legislação, a poderem administrar esses recursos.

 

Tribunais de Justiça de Estados como Rio Grande do Sul e Santa Catarina conseguiram aprovar nos últimos anos nas Assembléias leis que transferem parte dos rendimentos com os depósitos para suas contas. Essas leis, porém, foram alvo de Ações Direta de Inconstitucionalidade promovidas pela OAB, que, entre outros pontos, questiona a possibilidade legal de os Estados legislarem sobre o assunto.

 

Sem uma regulamentação nacional e definitiva, em outros Estados o que ocorre é a assinatura de convênios de "apoio financeiro" entre os bancos e o Judiciário, cuja moeda de troca costuma ser a administração dos depósitos. Para obter mais recursos, o Judiciário - com a prerrogativa da escolha - pressiona os bancos por maiores ofertas, sob pena de terem essas contas transferidas a concorrentes. Barganha resumida na análise do desembargador de um dos maiores tribunais de Justiça do país: "O Judiciário exercita uma pressão sobre os bancos: 'Você não vai nos ajudar, então vamos transferir o depósito para seu concorrente'". Em São Paulo, por exemplo, em troca da administração de R$ 12,6 bilhões dos depósitos, a Nossa Caixa irá construir a nova sede do TJ, avaliada em cerca de R$ 200 milhões. No Rio de Janeiro, o Banco do Brasil paga 80 milhões anuais ao Tribunal de Justiça, como retribuição por cuidar dos R$ 4,8 bilhões ali depositados. Em Alagoas, o Banco do Brasil administra os R$ 60 milhões em troca do pagamento de R$ 5 milhões ao TJ alagoano, destinados a investimentos em informatização e aquisição de mobiliário para a nova sede.

 

A falta de regulamentação, em suma, tem origem em uma discussão sobre a possibilidade jurídica de Executivo ou Judiciário mexerem em recursos que originalmente pertencem a contribuintes que questionam débitos com o Estado. O Judiciário se considera no direito de utilizar parte desses valores, por ser o órgão responsável pelo andamento dos processos. Também reclama do contingenciamento do Orçamento e das constantes reduções, pelo Executivo, das propostas orçamentárias elaboradas pela Justiça. A prática é considerada inconstitucional, mas os Executivos acharam uma outra maneira de reduzir: por meio de suas bancadas nas Assembléias Legislativas, essas sim com direito de mexerem nos recursos. O Executivo, por sua vez, anseia pelos depósitos para utilizá-los no pagamento de suas milionárias dívidas decorrentes das decisões judiciais, os chamados precatórios, e ainda para ampliar investimentos em outras áreas.

 

Pelo Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, então sob a presidência de Nelson Jobim, formou uma comissão para debater o assunto, mas devido às Adins contra as leis do RS e SC, ela não avançou. "Nos parecia injusto que o órgão que produz esses depósitos não receba remuneração alguma por aquilo que ele, através de suas funções, propicia aos bancos. Para o sistema financeiro esses lucros são enormes e nos melhores depósitos, que são depósitos a longo prazo. Então montamos um grupo para avaliar como seria possível uma legislação sobre isso, mas esbarramos nas Adins. Qualquer decisão poderia ser precipitada", afirma o desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marcus Faver, que coordenou a comissão. Nos três maiores bancos públicos do país, os valores são remunerados pela TR acrescida de 0,5% ao mês (Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil) e pela taxa Selic (Nossa Caixa).

 

No Executivo, o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) editou em 1998 uma lei - também objeto de Adin - autorizando a União a levantar os valores decorrentes de depósitos judiciais e extrajudiciais referentes a tributos e contribuições federais. A fim de que os Estados também fossem contemplados com a medida, FHC editou outra lei semelhante quatro anos mais tarde, propiciando aos Estados mexerem também nos depósitos, mas somente para o pagamento de precatórios alimentares. Lula, em dezembro de 2006, abriu a utilização desses recursos também para o pagamento de precatórios não-alimentares, o que levou a uma nova onda de normas estaduais.

 

Apesar da legislação só permitir que bancos oficiais administrem depósitos judiciais, os bancos privados também participam dessa briga. Um dos campos de batalha foi a tramitação na Câmara da lei promulgada por Lula. Na Comissão de Finanças e Orçamento, duas alas de parlamentares travaram embates sobre o tema: os que, como o autor do projeto, o economista Eduardo Cunha (PMDB-RJ), são favoráveis à realização de licitação aberta a qualquer banco para a escolha de qual tomará os depósitos; e os que defendem que esse mecanismo seja restrito aos bancos oficiais, liderada pelo ex-tesoureiro do PT, José Pimentel (CE), ligado a sindicatos de bancários. Com maioria na Casa e os privilégios que a condição de governista lhe dá, acabou sendo mantida a reserva de mercado aos bancos públicos.

 

No entanto, a derrota legislativa dos bancos particulares não foi obstáculo para que eles atuassem. Uma medida provisória baixada por FHC e também questionada no STF permitiu que os incorporadores dos bancos estatais que fossem privatizados mantivessem as contas dos depósitos estaduais até 2010. Pelo menos em dois Estados isso foi feito. Em Pernambuco, o Banco Real adquiriu o Bandepe e, com ele, os R$ 495 milhões nele depositados judicialmente. O contrato de cessão gerou uma ação popular de ex-funcionários do Bandepe, que questionam a ausência de concorrência na tomada dessas contas. No parecer elaborado pelo Ministério Público, a promotora se posicionou favoravelmente aos autores da ação, avaliando que "o contrato administrativo está eivado de nulidade, pois o direito adquirido de permanecer com o contrato pertence apenas ao Bandepe". Em Goiás, o Banco Itaú adquiriu o Banco do Estado de Goiás. No Estado, há R$ 367 milhões oriundos de depósitos judiciais, também administrados pelo Banco do Brasil e Caixa.

 

A maior intimidade entre bancos e Judiciário ocorre a despeito dos bancos serem um dos maiores clientes da Justiça. Um levantamento do TST de julho deste ano coloca as instituições financeiras no topo desse ranking. Depois do INSS, que lidera o estudo, vem a Caixa Econômica Federal (2º), Banco do Brasil (3º), Banco Santander (7º) e Bradesco (13º). No STF, a Caixa é o 8º e o Banco Real ABN AMRO é o 10º.

 

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