08/03/2019 - 13:08 | última atualização em 08/03/2019 - 16:33

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#DireitoDelas: Valéria dos Santos

redação da Tribuna do Advogado

Para marcar o Dia Internacional da Mulher, fomos a campo procurar advogadas comuns com histórias extraordinárias, que mostram, através de seus relatos, força para superar adversidades e tocar uma carreira na advocacia apesar de filhos que demandam atenção constante, de dores pelo corpo, de cicatrizes de abuso causado pelo parceiro conjugal ou mesmo pelo Poder Judiciário, como no caso de Valéria Lúcia dos Santos, de 49 anos, a primeira personagem da série. Valéria ficou conhecida por ter sido algemada por policiais durante uma audiência no 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias a mando de uma juíza leiga. Foi desagravada pela Ordem, virou símbolo de resistência e feminista, embora não faça parte de qualquer movimento. Hoje, quase 6 meses depois do episódio, Valéria mira aquele mesmo fórum da janela de seu primeiro escritório próprio, em que recebe causas ligadas a racismo e a injustiças sociais.  Em muitas delas, advoga pro bono. É aí que pratica sua militância, conta ela, sem hastear bandeira. É uma advogada que busca retomar o protagonismo de sua própria história, sem sucumbir à “narrativa do vitimismo”. Tudo a tempo de buscar a sobrinha neta na escola, o maior prazer de sua nova rotina.
 
Valéria Lúcia dos Santos, 49 anos, em depoimento à repórter Clara Passi
 
 
Quando olho pela janela do escritório com vista para o fórum de Caxias, que acabo de montar, me sinto empoderada. Que afronta, né? Sou de Mesquita, mas quis montar meu primeiro escritório aqui, porque aqui tive a confirmação de que sou advogada, de que essa é a minha vocação. Há quem me tenha me procurado porque viu que não tenho medo de brigar. O número de clientes melhorou bastante desde o episódio.
 
Tenho uma sensação de dever cumprido, embora ainda tenha muito o que aprender. Estou em processo de construção. Meu escritório é muito voltado para questão do negro. Posso dizer também que sou feminista nas minhas atitudes, mas não sabia que eu era. Quando ouço que não tenho o direito de falar, a sociedade me leva a ser feminista. Não faço parte de grupo feminista, mas minhas atitudes o são. Não no sentido de ser superior ao homem. Para sermos uma classe mais forte, temos que nos unir. No episódio do fórum, sabia que ali eu não poderia ser violenta, porque daria motivo para eles serem mais violentos ainda, então me deixei algemar.
 
Ouço de colegas mulheres problemas no enfrentamento no Judiciário, com os delegados de polícia, por exemplo. A questão não é só de raça, é de gênero também. A luta é diária e não vai mudar para mim, só para minha sobrinha-neta, de 10 anos, que hoje diz que vai começar a jogar basquete por influência minha. Ser mulher nesse mundo é difícil, mas é gratificante. Adoro ser mãe, avó.
 
“Quando ouço que não tenho o direito de
falar, sociedade me leva a ser feminista.”
 
O Brasil tem o grande problema do racismo estrutural. É entranhado, um ranço. Mandei meus filhos embora do Brasil por causa disso. Um deles fez 18 anos no dia em que aquele rapaz foi asfixiado pelo segurança no Extra (Em 14 de fevereiro, Pedro Gonzaga, de 19 anos, foi morto asfixiado por um segurança do supermercado, na Barra da Tijuca). Eu me coloco no lugar dessa mãe. Minha escolha foi dolorida, estou há oito anos sem vê-los. Mas foi necessária porque ainda tenho contato com eles. E essa mãe?
 
Antigamente, esperávamos que os brancos tomassem iniciativa para que a gente pudesse dar esse passo. Hoje, eu não dependo mais. Isso é o que Marielle estava ensinando para gente. Nós nos empoderamos. Mas quem está no poder não quer que cheguemos lá. Então somos obrigadas a ser resistência. Não posso fugir da questão racial. Sou negra e tudo é mais complicado. Na academia foi mais complicado, tinha que demonstrar que tinha capacidade. Quando entrei na Universidade Veiga de Almeida, ouvi de um professor: “Agora teremos que entubar esse povo analfabeto funcional”. Depois, ele passou a me respeitar.
 
Quando fui algemada, estávamos vivendo um momento político delicado, várias minorias estavam se manifestando. Aquela imposição foi para afirmar: “Aqui você não vai ter direito de falar, aqui não te vemos como tal”. A colega (a juíza leiga) tinha me perguntado se eu era irmã da minha cliente. Poderíamos até sermos irmãs, mas foi um jeito de me diminuir. Por isso na época eu disse que não queria dar foco à questão racial. Minha intenção não é que você me veja como advogada negra, mas como advogada, só isso, independentemente da minha cor. Não quero falar do que aconteceu naquela sala num tom de vitimismo.
 
Naquela noite, tomei um banho e chorei de madrugada. Elza Soares sentiu. Era um choro de senzala, ela sentiu que a irmã estava chorando. No Instagram dela, escreveu que não conseguia dormir por minha causa. Depois, a coisa tomou uma proporção tamanha que não tive como elaborar nada, fui indo. Quando vi, estava na OAB/RJ.
 
Cobro, dos movimentos, ação. Não faço parte de nenhum. Atuo na prática, o que é melhor do que hastear bandeira. Atuei recentemente, pro bono, num processo de uma senhora muito pobre e doente contra o INSS, por exemplo.
 
O esporte me empoderou muito. Ter saído de casa e ido morar sozinha aos 17 anos para jogar basquete, bater de frente com meu pai, que achava que menina virgem, menor de idade, não poderia fazer isso. Enfrentei ele, fui para o Sul, tinha minha grana, me sustentava, controlava meu dinheiro. Voltei para o Rio aos 23 anos, fui fazer faculdade de Educação Física na Universidade Federal Rural. Depois, fui jogar nos Estados Unidos, com bolsa. Não falava inglês, mas as coisas estavam muito difíceis aqui e fui. Cheguei lá com US$ 75, você imagina. Tinha bolsa e encarei. Me falaram que, para arrumar uma grana, eu poderia limpar os estádios depois dos jogos. Então limpava ginásio para poder vir para o Brasil nas férias. Depois, trabalhei por 10 anos na área de saúde. Resolvi investir na minha formação e entrei para o Direito, que tem muito a ver comigo, que sou questionadora.
 
*Em setembro de 2018, um relatório da Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais (Cojes), do TJRJ,  isentou de culpa a juíza leiga e os policiais que algemaram Valéria. Foram também instaurados procedimentos externos ao Tribunal: perante à Corregedoria de Polícia, no Ministério Público e no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ.
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