29/03/2019 - 14:33 | última atualização em 29/03/2019 - 15:53

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#DireitoDelas: Ana Maria de Sá Rodrigues

redação da Tribuna do Advogado

“Você esperava encontrar uma velhinha?” É assim que Ana Maria de Sá Rodrigues, 72 anos de idade, recebe a equipe de reportagem no escritório que mantém em frente ao Fórum Central do Rio. Na hora da foto, posa altiva com sua bengala. O meio século de advocacia foi coroado com a Medalha Myrthes Campos, outorgada em julho de 2018 pela OAB Mulher. A advogada, especializada em Família e Sucessões e em Direito Imobiliário, diz que nos últimos 20 anos não houve um dia que tivesse passado sem dor. Pudera. Cada passo seu é acompanhado pela artrose que tomou toda sua coluna e os joelhos, pela fibromialgia, pelas três hérnias de disco na lombar e duas na cervical.

Se já não consegue atravessar a via crúcis que é ir aos tribunais ver os processos, Ana ainda mantém assiduidade nas audiências. Por causa da diabetes, não pode tomar antiinflamatórios por muitos dias, então teve que aprender a conviver com a dor na marra. Então leva a dor, a bengala (ou se estiver num dia muito ruim, o andador) e vai trabalhar. “Nunca deixei de advogar, de ajudar a cuidar da neta, de viajar”, conta.

Se para as moças de família da sua época “chegar lá” tinha muito a ver com arrumar um bom casamento, Ana arrumou “um péssimo, que não deu certo”. Nem sequer virou o ano. Então foi criar a filha sozinha e tocar a carreira, com ajuda da boa vontade da dona da creche, é verdade, que, às vezes, levava a menina junto para casa quando o juiz fazia o expediente se estender além do planejado. “Aprendi com minha mãe que casamento não é carreira para mulher”.
 
 
 
Depoimento a Clara Passi
Foto: Bruno Mirandella
 
“Você não deve se subjugar às limitações. Isso aqui é o que me mantém viva, com a cabeça boa, ajudando as pessoas. Uso bengala e, às vezes, andador, que tem quatro rodas, lugar para sentar, é ergonômico. Viajo com ele, não tenho o menor problema. Já fiquei seis meses em cadeira de rodas. Aquilo, sim, foi difícil. Dependia de alguém para me levar aos lugares. Mas, mesmo assim, não parei de trabalhar, até mesmo quando tive um câncer, há 13 anos. Quando me sinto um pouco melhor, venho ao escritório.

Da genética ninguém foge. Meu pai morreu aos 63 anos de leucemia. Mas tinha tanta garra que ia à fábrica até o final. Passava mal e um funcionário precisava trazê-lo para casa. Tinha só o primário, mas era empreendedor, inteligente, forte, inventou máquinas, no final da vida chegou a fabricar bombas de prospecção de petróleo.

Minha mãe era dona de casa. Tinha um pouco mais de instrução que ele, mas lia muito e era muito avançada para seu tempo. Aprendi com ela que o casamento não é carreira para a mulher. A única forma de sair da pobreza - porque nós éramos pobres - é estudando.

Sempre estudei em escola pública até a faculdade de Direito, cursada na UFRJ, então Nacional. Comecei a trabalhar já no quarto ano da faculdade. Um ano antes de me formar, eu me inscrevi na OAB e já tinha meus processos. Em 1970, com um ano de formada, abri meu primeiro escritório.

Eu me casei, mas o casamento não deu certo. Eu me desquitei no mesmo ano, em 1974. Nem havia divórcio ainda no Brasil [o divórcio foi regulamentado em 1977].

Sofria preconceito por ser desquitada e, antes disso, por ser mulher, já desde a faculdade. Uma das histórias que lembro dessa época é a de juri simulado entre a Nacional e a Cândido Mendes. Só homens foram escolhidos para participar. Se o professor, o grande Heleno Fragoso, não os tivesse obrigado, não teriam me aceitado. Queria muito ter sido a oradora da minha turma, fiz teatro amador por 10 anos, mas perdi para um homem.

Para formar uma carteira, é preciso trabalhar muito, direito. Minha filha ficava na creche. Quando as audiências atrasavam muito, eu pedia licença ao juiz e ligava para a dona da creche do orelhão do corredor do fórum. Às vezes ela, que é minha cliente até hoje, tinha que levar minha filha para a casa dela. Estou nesta mesma sala há 31 anos, tenho todos os processos detalhados em fichas escritas à mão. Na Vara de Família, ser mulher ajuda muito. Os homens chegam mais reticentes, mas consigo criar uma relação de confiança. Com outras mulheres, digo que também sou divorciada, que sei o que ela está passando.

Comecei a me perceber bonita na faculdade. Hoje, sou uma senhora de 72 anos, gordinha. Não me perturba, mas quero emagrecer por causa dos problemas de coluna e joelho. Não fiz nada no meu rosto. Não me vali de ser uma mulher bonita. Pelo contrário.

Trabalhei por 17 anos numa entidade da Marinha em que todos eram homens.  Sofri assédio lá, de um cidadão casado. Chamei-o de doido e, em vez de fazer daquilo um escândalo ou até processá-lo, fui colocando ele e os outros no lugar deles, estabelecendo distância, chamando-os de ‘senhor’. Vários continuaram meus clientes e amigos, suas esposas também. Na minha época, as pessoas achavam que mulher bonita não podia ser inteligente ou tinha que se dedicar a se casar com um marido rico.

Estamos vendo hoje o empoderamento da mulher. Fiz política na faculdade, fui contra a ditadura, corri da polícia. Era feminista no sentido de procurar meu espaço, pois sabia que tinha esse direito. Mulher é tão inteligente quanto o homem, é competitiva, tem comprometimento, merece ganhar o mesmo por seu trabalho.
 
♀ A série #DireitoDelas marca o mês do Dia Internacional da Mulher com histórias extraordinárias de advogadas que mostram força para superar adversidades e tocar uma carreira apesar de filhos que demandam atenção constante, de dores pelo corpo, de cicatrizes de abuso causado pelo parceiro conjugal ou mesmo pelo Poder Judiciário.
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