27/11/2015 - 10:25 | última atualização em 27/11/2015 - 12:22

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Defensoria pede fechamento de hospital de custódia e indenização

jornal O Globo

É perguntar o que mais faz falta a Carlos Almeida de Freitas para ele desfiar nomes femininos, encontrados com esforço na lembrança: “Tenho saudades de Teresa, de Noêmia, de Sônia...”
 
Sentado num banco, o homem de 68 anos murmura que as mulheres são irmãs e primas que não vê há mais de duas décadas. Portador de esquizofrenia e distúrbios mentais, Carlos ingressou no sistema penitenciário em 1992 por ter furtado uma bicicleta. Apesar de o crime ter uma pena, segundo o Código Penal brasileiro, de, no máximo, quatro anos, ele está preso há 23. Vive no mais antigo hospital de custódia e tratamento psiquiátrico da América Latina, o Heitor Carrilho, no Centro do Rio. Transformado em instituto de perícias da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) em 2013, o local ainda abriga 37 pacientes. Todos já cumpriram as medidas de segurança que lhes foram impostas. Contudo, por ausência de laços familiares ou de vagas na rede de saúde mental, permanecem na instituição.
 
Às vésperas do julgamento, na próxima quarta-feira, de apelação da Defensoria Pública do Estado, que pede indenização individual e coletiva por danos morais aos que vivem ali, o diretor do antigo hospital, Marcos Argolo, sintetiza a situação: "Essas pessoas estão presas num lugar que não é nem cadeia nem hospital. Elas são livres. Só não têm para onde ir. E carregam um duplo estigma: de maluco e de criminoso."
 
Outra ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público do Rio em 2012 e agora em fase de alegações finais, diz que o lugar tem condições de atendimento precárias e pede a "imediata desinstitucionalização dos pacientes" além do estabelecimento de um cronograma para o processo.
 
Para Argolo, não é possível afirmar quando haverá uma solução para o local, inaugurado em 1921. "Os investimentos na rede de saúde mental não têm se equiparado ao fechamento dos hospitais de custódia", lamenta. "É uma incógnita se vamos comemorar os cem anos do Heitor Carrilho sem pacientes aqui dentro. Não vejo esse processo ocorrendo a curto prazo."
 
O descompasso das redes explica histórias como a de Regina Célia Nascimento, de 49 anos. Ela vive internada desde antes dos 20 em razão de transtornos mentais. Ao agredir outra paciente numa unidade psiquiátrica, foi levada para uma delegacia e, dessa forma, ingressou no sistema penitenciário. Seu tratamento foi substituído por uma medida de segurança, de forma imprópria, como define a psicóloga Olívia Vianna, técnica de referência da paciente. Sem família, Regina reconhece o pai e a mãe em funcionários e visitantes décadas mais jovens que passam pelo Heitor Carrilho, onde está há uma década.
 
"Paizinho, deixa eu lhe dar um beijo aqui", pede para um deles.
 
Filho perdido há 20 anos 

Essa não é a única história de separação de pais e filhos no Heitor Carrilho. Eliane Silvina da Silva, de 54 anos, fala no presente do bebê afastado dela há duas décadas. O seu ingresso no sistema ocorreu logo depois do nascimento da criança. No período puerperal, Eliane teve um surto e agrediu um médico. "Tenho um filho recém-nascido na maternidade", explica, se esquivando, porém, de se estender sobre o assunto.
 
Recentemente, técnicos da unidade localizam a irmã de Eliane, que chegou a visitá-la. A precariedade econômica da mulher inviabilizou que acolhesse a paciente, mas a reaproximação é comemorada pelos profissionais. Carlos Almeida de Freitas também tem recebido visitas de uma sobrinha. Os dois são exceção.
 
"Todo mundo olha o louco infrator como muito perigoso, mas pesquisas indicam que a reincidência deles gira em torno de 4%. A do infrator comum é de 70%. Não é o paciente que é perigoso, mas sim a sua desassistência. Os delitos, em geral são cometidos em momentos em que eles não estão sendo assistidos", explica Monica Tostes, subdiretora da unidade.
 
Além de indenizações, a Defensoria Pública pede na Justiça a proibição de novos ingressos no Heitor Carrilho e a sua desativação para acolhimento de pessoas. A ação, ajuizada pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos em 2013, foi julgada improcedente em primeira instância.
 
"Essas pessoas precisam ser alocadas em residências terapêuticas onde recebam tratamento adequado. Hoje estão numa situação de limbo jurídico e social", argumenta o defensor Daniel Lozoya.
 
Em documento de outubro passado, a Procuradoria Geral alega que não é possível atribuir ao Estado uma "suposta falha no processo de desinstitucionalização dos pacientes internados no Hospital Heitor Carrilho" De acordo com o órgão, a atribuição de implementar os serviços de saúde mental é de gestores locais, ligados à rede do município.
 
Procurada, a Superintendência de Saúde Mental da Secretária municipal de Saúde informou que todos os usuários do antigo hospital recebem acompanhamento. "Parte dos abrigados deverá ser inserida em residências terapêuticas, conforme a avaliação das especificidades de cada caso individualmente e a expansão da rede" acrescentou, em nota. Hoje, o Rio tem 62 residências. A previsão da secretaria é que o número chegue a cem em dois anos.
 
Para os que vivem no Heitor Carrilho, cada novo prazo imposto pelo poder público representa frustração. À espera de uma vaga desde 2013, Adilson Navega Ribeiro, de 42 anos, comprou, com o benefício que recebe, frigobar, ventilador e televisão. Os eletrodomésticos estão há seis meses atrás de sua cama, junto a uma mala onde ele guarda material de higiene pessoal. Preso há mais de dez anos por ter cometido um homicídio durante um surto psicótico, ele deseja passar o Natal fora do antigo hospital de custódia.
 
"Quero pegar liberdade para me comunicar. Aqui não tem nem celular para falar com alguém que possa me ajudar a ir embora. Aí escrevo tudo em papel", diz, mostrando um pedaço de papel ofício.
 
Em caneta vermelha, anotou os versos da música "Na sombra de uma árvore", do compositor Hyldon, conhecido por ser autor de "Na rua, na chuva, na fazenda" "Larga de ser boba e vem comigo/ existe um mundo novo e quero te mostrar/ que não se aprende em nenhum livro/ basta ter coragem pra se libertar, viver, amar" diz a letra.
 
"Essas pessoas estão presas num lugar que não é nem cadeia nem hospital. Elas são livres. Só não têm para onde ir. E carregam um duplo estigma: de maluco e de criminoso."
 
Resolução de 2004 tenta evitar que medidas de segurança sejam perpétuas

Para evitar que as medidas de segurança de pacientes psiquiátricos infratores sejam perpetuadas, uma resolução de maio de 2004 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária estabeleceu diretrizes adequadas à Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que ficou conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. De acordo com o documento, o tratamento dos portadores de transtornos mentais considerados inimputáveis deve ter como objetivo reinseri-los socialmente, "tendo como princípios norteadores o respeito aos direitos humanos, a desospitalização e a superação do modelo tutelar".

Entre as orientações, o conselho afirma que a medida de segurança deverá ser cumprida em hospital que ofereça assistência integral aos pacientes, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos e de lazer. Indica também que a conversão do tratamento ambulatorial em internação só deve ser feita com base em critérios clínicos, não sendo bastante para justificá-la a ausência de suporte sociofamiliar.
 
O documento diz ainda que a medida de segurança poderá ser restabelecida apenas em caso de novo delito e depois de sentença judicial. Em casos de pacientes saem dos hospitais e têm piora no quadro, o indicado é que sejam tratados em serviço de referência.
 
Um censo encomendado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, em 2011, mostrou que 3.989 pessoas viviam em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico em 19 estados e no Distrito Federal. Embora o limite da pena imposta pelo Estado brasileiro a indivíduos considerados imputáveis seja de 30 anos, o estudo "A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil" identificou então 18 pessoas internadas por mais de três décadas.
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