22/10/2021 - 17:23 | última atualização em 26/10/2021 - 21:16

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Comissão atua e casal de lésbicas obtém alvará judicial que autoriza bebê a ganhar registro de dupla maternidade ao nascer

Caso, que envolve inseminação caseira, é um dos primeiros do estado

Clara Passi


Bernardo Vicente Alonso não nasceu ainda, mas já colocou seu nome na história do Judiciário fluminense e na luta pelo reconhecimento dos direitos sociais de pessoas LGBTQIA+. O bebê, que acaba de completar 37 semanas no ventre, ganhou, nesta sexta-feira, dia 22, o direito de já sair da maternidade com os nomes de suas duas mães: a professora de História Ana Paula Alonso do Nascimento e a promotora de vendas Aline da Silva Vicente, ambas de 37 anos. 

O  casal homoafetivo, que vive em união estável desde 2017, fez uso de inseminação caseira com sêmen de doador anônimo por não ter meios financeiros para arcar com o procedimento de concepção em clínicas particulares ou disposição para esperar anos por vagas no serviço de fertilização assistida oferecido pelo Sistema Único de Saúde. Bernardo será o primeiro bebê do gênero masculino do Estado do Rio de Janeiro gerado por inseminação caseira a ter garantido o direito de já sair da maternidade devidamente registrado em nome das duas mães.

Já na reta final da gravidez, prevendo dificuldades para registrar o filho, procuraram ajuda da Liga Brasileira de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (LBL). A representante Virginia Figueiredo encaminhou o caso à Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da OABRJ, onde foi abraçado pela procuradora da comissão, Mariana Rodrigues, e pela integrante Thaíse Zacchi Pimentel. 

Nesta sexta-feira, dia 22, Rodrigues despachou a petição inicial do alvará judicial para registro da dupla maternidade no ônibus do projeto Justiça Itinerante do TJRJ estacionado na Praça XI, e após audiência simultânea com o Ministério Público, teve o pedido acolhido pela juíza Daniele Lima Pires Barbosa.

Judiciário ainda está atrasado nesta pauta


A matéria é recente e tem provocado cada vez mais o Judiciário a ampliar o entendimento a respeito do registro público no Brasil no âmbito do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, de 2017, que somente identifica o campo  “genitores” na certidão de nascimento como “filiação”. Isso acaba facilitando o reconhecimento de dupla maternidade para casais que passaram por técnica de reprodução assistida (seja em clínicas particulares ou no SUS) e desguarnece aquelas que optaram pelo método caseiro. 

Mas isso começa a mudar: logo antes de as duas serem atendidas, um outro casal de lésbicas havia garantido o mesmo direito por iniciativa da Defensoria Pública, que tem atuado em parceria com a CDHAJ por meio do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), representado pela defensora Mirela Assad Gomes.

Gomes foi precursora no Rio de Janeiro ao conseguir, em 10 de setembro deste ano, o primeiro alvará judicial de registro de dupla maternidade antes do nascimento, em caso de gravidez gerada por inseminação caseira.

“Esta é mais uma vitória da cidadania. É fundamental que o Judiciário esteja atento aos avanços da nossa sociedade. Neste caso, o bem maior a ser protegido é o direito à dignidade e o respeito às mães e ao filho que está por nascer. Não podemos deixar de registrar o trabalho que vem sendo feito em parceria com a Defensoria Pública, que está atenta na luta pelo reconhecimento dos direitos sociais”, afirma o presidente da CDHAJ, Álvaro Quintão.

Rodrigues realça a facilitação de acesso ao Poder Judiciário proporcionada pelo projeto Justiça Itinerante e lamenta a dificuldade de se conquistar direitos pela via legislativa nesta quadra histórica. 

“As posições ideológicas conservadoras têm dominado o parlamento e temos nos socorrido da via judicial para garantir direitos básicos para a população LGBTQIA+. Nós, da CDHAJ, que estamos cotidianamente acompanhando as famílias de vítimas de homicídios, hoje auxiliamos juridicamente uma nova vida”.

Para Pimentel, trata-se de uma conquista histórica, que, no entanto não diminui a urgência de os direitos da população LGBTQIA+ serem garantidos por lei.

“É necessário que, num futuro próximo, este direito de registro de nascimento possa ser alcançado diretamente nos cartórios de registro civil”.

Tomadas por forte emoção e vertendo lágrimas de “alívio e gratidão”, as mães de Bernardo comemoraram o feito perante o TJ como se festejassem uma espécie de parto há muito aguardado.

“Hoje eu pari Bernardo. A partir de agora, ele é oficialmente meu. Fui tomada pela certeza de que, perante a sociedade, eu também sou sua mãe”, disse Ana Paula, que espera o filho sem no entanto carregá-lo na barriga.

“Como um casal de mulheres negras e homossexuais, oriundas de favela [as duas moravam no Complexo da Maré até se mudarem recentemente para um apartamento que compraram juntas também na Zona Norte para acomodar a família que se forma], enfrentamos inúmeras lutas diárias. Poder gerar Bernardo sabendo que já sairá da maternidade com o nome de nós duas me enche de alegria por saber que estou gerando um guerreiro que virá com senso de justiça e vontade de tornar esta sociedade mais justa”.

Aline conta que o dia de hoje marca a superação de inúmeras barreiras, a começar por demonstrações de preconceito de alguns familiares. 

“Depois de muitas tentativas, frustrações e informações desencontradas, conseguimos concretizar nosso sonho. Meu choro é de gratidão”.

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