28/08/2023 - 18:08 | última atualização em 28/08/2023 - 19:02

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Clamor pelo direito à vida: política de extermínio e a ligação com o passado escravocrata esquenta debate na OABRJ

"A vida nas favelas: uma existência de sacrifícios", expressou um palestrante em alusão aos 20 anos da Chacina do Borel

Biah Santiago



A negação do direito à vida, engendrada por um projeto arquitetado por um grupo específico com a intenção de uma possível "limpeza social" – reconhecida como política de extermínio –, e a conexão dessa abordagem com o período escravocrata foram os temas centrais de debate promovido pela Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Brasil (Cevenb) da OABRJ. O evento ocorreu na sede da Seccional na segunda-feira, dia 28.

A gestão do encontro, que pode ser assistido na íntegra pelo canal da Ordem no YouTube, esteve a cargo do presidente da comissão, Humberto Adami. 

"Nada nos trará de volta os africanos que foram trazidos para o Brasil, mais de dois milhões de vidas perdidas em navios negreiros. A vida do negro não valia muito na época da escravidão, assim como não vale até hoje, e precisamos discutir formas de reparação nesse contexto de denúncias", expressou Adami.



"Se a Constituição diz que não há pena de morte no país, mas todos os relatos e processos criminais provam o contrário, somado à omissão do Ministério Público em sua tarefa constitucional de fiscalizar a atuação da Polícia em sua totalidade, com tanto dinheiro público e privado investido nesses estudos, esse tema deveria ser levado ao Supremo Tribunal Federal."

Junto ao presidente da Cevenb, compuseram a mesa o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e doutor em Ciência Política (teoria política) pela UFF, João Batista Damasceno; o professor, doutor e orientador de História Comparada da UFRJ, Babalawo Ivanir dos Santos; o coordenador nacional do Movimento Policiais Antifascismo e delegado aposentado da Polícia Civil, Orlando Zaccone; e a representante da Rede de Comunidade e Movimentos Contra a Violência e Movimento do Borel "Posso me identificar?", Maria Dalva Correia.

"Mais do que tolerância, uma coexistência respeitosa", ainda que existam diferenças de opiniões, ideologias e concepções, pois os direitos são iguais e todos devem ter o direito à vida", observou o desembargador João Batista Damasceno.

Ao voltar à função de advogado após aposentar-se de suas atividades como delegado de polícia, Orlando Zaccone falou sobre o período em que atuou na Polícia Civil e a visão crítica adquirida ao longo dos anos em relação ao sistema de Justiça criminal.


"O direito à vida é o mais fundamental de todos, e os outros direitos não existem sem termos esse princípio básico. Temos que interpretar este evento como uma forma de denúncia da enorme quantidade de pessoas exterminadas através da política de extermínio", ponderou Zaccone, destacando o procedimento para abertura de inquérito após mortes em operações policiais.



Para justificar a quantidade deliberada de arquivamento dos casos, Zaccone abordou uma pesquisa realizada pelo professor Michel Misse, da UFRJ. De acordo com o estudo, 95% dos inquéritos policiais instaurados para verificar ação letal da polícia eram arquivados com menos de cinco anos. Para ele, é preciso julgar "quais foram os fundamentos da legitimidade para o arquivamento dessas mortes no Brasil".

"Vemos diariamente nos noticiários uma série de mortes, que acabam, em certa medida, sendo naturalizadas pela sociedade. Essa produção de cadáveres ocorre dentro do Estado de direito e é realizada através de uma política de Estado. Não acredito que o processo de criminalização seja o caminho para a transformação da realidade no mundo; acredito sim que a única ferramenta que temos para fazer isso são as políticas sociais."

Para Babalawo Ivanir dos Santos, todos os setores do poder público e do sistema jurídico, enquanto Estado, "têm responsabilidade pelo que acontece hoje".

"O mais triste é ver governantes com práticas semelhantes. Quando discutimos segurança pública e extermínio, devemos entender o que a sociedade pensa sobre isso. E já temos a resposta em questões como o racismo, a misoginia e a homofobia", disse Ivanir.


"Nossa luta é muito mais do que um ato isolado; é a mentalidade que permeia as instituições. Sou sobrevivente de um ataque da Polícia Militar em 1992, quando meu carro, com meu filho dentro, foi metralhado nas proximidades da Mangueira, e por pouco não entramos para as estatísticas. Parece que a escravidão foi algo muito distante, mas é justamente o contrário, pois os resquícios que ainda vemos hoje estão relacionados ao modus operandi da mentalidade escravista que ainda persiste na sociedade brasileira. Enquanto não enfrentarmos isso e não considerarmos essa parcela da sociedade como cidadã, nada irá mudar."


Em seu discurso, Maria Dalva relembrou os 20 anos da chacina na favela do Borel, na qual, em 16 de abril de 2003, Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva foram assassinados por policiais militares na favela localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro.

“Sou mãe do Thiago, um menino que tinha 19 anos, era mecânico, formado, jovem aprendiz e morreu junto de seus três amigos em um ano emblemático, de genocídios e diversas mortes, uma fase ‘sinal verde’ para a matança da polícia”, disse Maria. 

“A vida de quem mora na favela é uma vida de sacrifícios, principalmente para criar um filho. Quando meu filho teve a morte decretada, ouvi a frase de policiais ‘bandidos fortemente armados”, usando o auto de resistência. A política de guerra às drogas é racista, feita para controlar o território e proteger o Estado, e conta, ainda, com o respaldo da sociedade, que classifica bandido bom, é o bandido morto. Os homens da Polícia são os mesmos para julgar, considerar e matar, mas não para assumir o que fizeram.  Sofremos um terrorismo silencioso e temos nosso direito violado todos os dias”.

O ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e advogado, Siro Darlan também participou do encontro.

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