27/01/2016 - 10:21

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Capaz de inocentar presos, uso de DNA ainda é restrito

jornal O Globo

As notícias publicadas em outubro de 2013 pareciam um alívio para os mora| dores de um bairro de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. O "Tarado de Heliópolis" dizia a polícia, estava preso. O apelido era uma referência a um homem que ao longo de meses estuprou pelo menos sete mulheres na região. Os crimes ganharam repercussão em jor| nais e noticiários de TV, assim como a prisão do dentista André Luiz Medeiros Biazucc Cardoso, então com 26 anos. A polícia dizia que havia chegado ao suspeito pela identificação de seu carro e pelo reconhecimento de fotos em sua conta no Facebook.
 
Sete meses e 24 dias depois da prisão, porém, André foi solto. Exames comparando seu DNA ao do sêmen do estuprador contradisseram a polícia e comprovaram sua inocência.
 
"Ninguém tinha se preocupado em fazer testes de DNA antes, eles só queriam mesmo achar um culpado por causa da pressão da mídia. Teve programa de TV que mostrou minha foto dizendo que eu era suspeito de 30 estupros", afirma o dentista, que pretende entrar nas próximas semanas com uma ação indenizatória contra o estado. "Eu não desejo isso para ninguém, cara. Em Logo no início me deixaram 37 dias isolado numa carceragem em São Gonçalo, sem poder ver minha família. Foi um desespero".
 
A história do dentista acabou tendo um desfecho positivo, mas o caminho para provar sua inocência ainda é restrito a poucas dezenas de processos no Brasil. O uso do DNA para investigações criminais, que podería evitar a prisão de inocentes como André, engatinha no país. Até novembro, o Banco Nacional de Perfis Genéticos mantinha apenas 815 amostras de brasileiros condenados ou suspeitos por algum crime,segundo dados de relatório do Ministério da Justiça divulgado este mês. O número corresponde a somente 1,3% dos 60 mil condenados por crimes hediondos e violência grave do país. A lei ne 12.654, de 2012, contudo, prevê que todos eles deveríam ser submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, por meio de extração de DNA.
 
O banco guarda também materiais coletados de cenas de crime, corpos de vítimas, e familiares de pessoas desaparecidas, chegando a um total de 3.466 amostras. Até hoje, elas auxiliaram somente 148 investigações nos país.
 
"O número ainda é muito pequeno", analisa o diretor de comunicação da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), Hélio Buchmüller. "A lei de 2012 exige a inserção dos condenados, mas o próprio Judiciário e o Ministério Público não cobram do Estado a aplicação da lei. O Brasil não está atrasado em relação à tecnologia. Ela foi instalada, mas, por vários motivos, a lei não é cumprida".
 
O aumento do número de crimes solucionados dependería da ampliação da coleta do DNA de condenados. Assim, as amostras poderíam ser comparadas com os vestígios. A melhora do sistema, no entanto, esbarra na dificuldade de interlocução entre policiais, Justiça e secretarias de administração penitenciária. Nove estados que não têm laboratórios de genética forense (Acre, Alagoas, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins) ainda estão fora da rede.
 
Em 1999, o pedreiro Roberto Edimar Urias foi preso acusado do estupro e do assassinato de uma ex-namorada em Varginha (MG). Para a polícia, ele teria levado a mulher para uma construção inacabada, a violentado e a abandonado desacordada. Ela morreu poucos dias depois, sem poder identificar o criminoso. Roberto foi preso porque tinha arranhões no corpo, que ele atribuía a uma queda de bicicleta, mas que a promotoria dizia ser resultado do embate com a vítima, e foi condenado a 21 anos.
 
Apenas dois anos e quatro meses depois, o pedreiro foi solto, justamente pelo resultado de um teste genético.
 
"Ele foi torturado na prisão", lembra seu advogado, Gustavo Chalfun. "Na época, o exame de DNA era muito caro para se fazer por vias particulares, então pedimos para a delegacia, mas demorou muito para sair uma autorização. Depois de inocentado, entramos com um processo de indenização contra o Estado de Minas Gerais, que foi condenado a ressarcir Roberto em R$ 40 mil. Mas o valor ainda não foi pago".
 
Só um DNA de condenado no Rio
 
Diretor do Instituto de Pesquisa e Perícias em Genética Forense (IPPGF), ligado à Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rodrigo Garrido confirma que, quando a lei entrou em vigor, houve dificuldade de interlocução entre as instituições envolvidas desde a coleta até a inserção do perfil de condenados no banco. Contudo, ele garante que o diálogo entre autoridades fluminenses foi recentemente ampliado. Há expectativa de que, com a chegada de kits de coleta já licitados pelo estado, cerca de dois mil perfis genéticos desse tipo sejam inseridos anualmente no banco do Rio. Hoje há apenas um. Segundo Garrido, o número deveria chegar a cinco mil:
 
"A maioria dos nossos casos é de identificação de cadáveres, até pela demanda que existe.
Foi do laboratório do IPPGF, contudo, que partiram soluções de investigações de repercussão, como a do dentista André Luiz. Foram feitos quatro laudos antes que os técnicos concluíssem que o seu perfil não correspondia ao identificado em vestígios coletados nas vítimas de violência sexual".
 
"O Ministério Público reconheceu o erro, e uma sindicância foi aberta contra a delegada que prendeu o André", afirma José Carlos Tórtima, advogado do dentista e ex-procurador-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. "Depois do caso dele, várias pessoas me procuraram alegando erros semelhantes".
 
De acordo com a lei brasileira, apenas criminosos condenados são obrigados a doar material genético para exames. No caso de suspeitos, a perícia depende de determinação judicial ou da participação voluntária do acusado. No laboratório do Rio, o laudo de um teste de DNA fica pronto em no mínimo dez dias, um tempo que pode variar dependendo das condições da coleta.
 
- Temos a preocupação de liberar esse tipo de laudo com qualidade e rapidez, por entendermos a urgência do delegado, do juiz, mas sobretudo da sociedade - afirma Tatiana Hessab, administradora do Banco de DNA do Rio. - Em casos de repercussão, não podemos nos influenciar pelo que ouvimos fora do laboratório, mas é claro que temos consciência do papel social do nosso trabalho.
 
O relatório do Ministério da Justiça sobre o Banco Nacional de Perfis Genéticos reconhece a existência de vítimas de erros judiciais no sistema penitenciário. O uso da ciência e da tecnologia aplicadas ao auxílio da Justiça contribuiría para o "fortalecimento da produção da prova penal, ajudando a se evitar na prática, casos envolvendo condenações equivocadas e inocentes cumprindo pena por crimes que não cometeram" afirma o texto.
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