19/11/2009 - 16:06

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Artigo: Ver ou não ver, eis a questão - Geraldo Nogueira

Ver ou não ver, eis a questão


Geraldo Nogueira*

Como na peça de William Shakespeare, baseada na tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca e aqui fazendo um trocadilho, surge-nos a questão: ver ou não ver. A capacidade de visão em apenas um dos olhos, conhecida como visão monocular, deve ser ou não considerada como deficiência para efeitos das cotas nos concursos públicos?

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), não só considera a pessoa com visão monocular inserida nas cotas, como transformou esse entendimento na Súmula 377 de 28 de abril de 2009. Súmulas são enunciados que registram a interpretação adotada por um Tribunal a respeito de determinado tema com a finalidade de promover a uniformidade nas decisões do Judiciário.

As referências legais nas quais o STJ sustentou seu entendimento foram a Constituição Federal (artigo 37, inciso VIII), a Lei nº 8.112/90 (artigo 5º, parágrafo 2º), e o Decreto nº 3.298/99 (artigos 3º, 4º, inciso III, e 37), cabendo-nos aqui uma breve analise do ponto de vista jurídico adotado pelo STJ para edição da Súmula, nos detendo tão somente diante da compreensão do inciso I do art. 3º do Decreto.

"Art. 3o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
(...)”

Basta uma rápida leitura da norma acima para verificar que a definição dada à deficiência é bem contemplativa, permitindo ainda a interpretação subjetiva para o que seja “padrão considerado normal para o ser humano”. A deficiência visual monocular está perfeitamente amparada na definição estabelecida pelo inciso acima transcrito, ainda mais quando cabe ao Judiciário ampliar a compreensão das definições em matérias que tratam dos direitos humanos.

Um decreto, por sua natureza jurídica, não tem a finalidade de criar norma ou estabelecer linhas gerais de direito, mas sim de tratar assuntos específicos para viabilizar o fiel cumprimento das leis, conforme define o art. 84, inciso IV da Constituição Federal. O Decreto nº 3.298/99 regulamenta a Lei nº 8.753 de 24 de outubro de 1989, mas como esta não traz uma definição para o que seja pessoa com deficiência, a falta foi sanada na edição do Decreto. No entanto, um excesso foi cometido na redação de seu artigo 3º, pois que esse estabelece conceitos amplos que ultrapassam alguns dos objetivos do próprio Decreto, como por exemplo, garantir a igualdade de condições para provimento de cargos públicos através de concurso. Ainda observando o Decreto, verifica-se que o artigo 4º conceitua por área algumas deficiências, trazendo a idéia de que seja norma meramente exemplificativa da ampla e subjetiva definição antecedida pelo artigo 3º.

Diante desta constatação, clareia-nos a idéia de que a falha não está no possível e equivocado entendimento que o Judiciário possa ter sobre o tema e sim, na norma regulamentadora que deixa escapar do local apropriado as definições ditadas, trazendo maior amplitude da interpretação legal no campo das reservas de vagas em empregos e nos concursos públicos. Isto por que, para o caso específico dos concursos, o conteúdo do artigo 4º deveria estar inserido na sequência do artigo 37 do mesmo Decreto, o que poria fim a interpretação contemplativa da visão monocular dada pelo Judiciário.

Partindo do ponto de vista da igualdade de condições na efetivação de inclusão social e ressalvadas as exceções, entendemos que a pessoa com deficiência visual monocular não carece de amparo legal para ter acesso ao mercado de trabalho, pois que esta pode, inclusive, ser habilitada para a condução de automóveis. Mas, o que mais nos salta aos olhos sobre a injustiça do entendimento do STF, através de sua Súmula 377 é quando fazemos a comparação de igualdade de oportunidades entre uma pessoa cega, surda, tetraplégica ou com qualquer outra deficiência efetivamente incapacitante e uma pessoa com visão monocular. Fica evidenciado que o enunciado do STJ é medida injusta de absoluto desequilíbrio na equiparação de oportunidade entre as pessoas com deficiência, o que necessita da oportuna correção à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

*Geraldo Nogueira é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ

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