27/08/2024 - 15:07 | última atualização em 27/08/2024 - 18:07

COMPARTILHE

Artigo: O poder feminino na advocacia

Ana Tereza Basilio*





"A questão é se as meninas precisam de igual grau de ensino que os meninos. Tal não creio. Para elas, acho suficiente a nossa antiga regra: ler, escrever e contar. Não sejamos excêntricos e singulares. Deus deu barbas ao homem, não à mulher”. A fala do senador Visconde de Cairu, registrada nos arquivos do Senado, em Brasília, ocorreu durante os debates acerca da Lei Geral, a primeira legislação educacional brasileira, sancionada por Dom Pedro I no dia 15 de outubro de 1827. Mesmo diante de argumentos machistas, compartilhados por outros senadores, o dispositivo legal trouxe um avanço muito importante para as mulheres: estabeleceu a criação de escolas para meninas.

O acesso ao ensino superior só viria 52 anos mais tarde, em 1879, com matrícula feita pelo pai ou marido. Felizmente, 145 anos depois, muita coisa mudou. Hoje, nas faculdades do Brasil, as mulheres já representam 58% dos mais de 9 milhões de estudantes, segundo o Censo da Educação Superior. Na advocacia, profissão dominada por homens durante muito tempo, a maioria também é feminina. Segundo o 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV), realizado pela Fundação Getúlio Vargas, as mulheres são 50,4% dos cerca de 1,5 milhão de advogados de todo o país.

Os números mostram uma tendência de aumento impressionante da participação feminina entre os profissionais do Direito. Na faixa etária de 21 a 23 anos, a proporção delas sobe para 61%. No Rio de Janeiro, a presença da mulher advogada mais que triplicou em 50 anos. Entre aqueles com mais de 55 anos de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), as mulheres representam 18%. Já na fatia dos mais jovens, com até 5 anos de inscrição, as advogadas já são 58%. Ou seja, a advocacia é uma profissão cada vez mais feminina. No caso do Rio, a situação se reflete até no Poder Judiciário. O Tribunal de Justiça do estado é o que apresenta a maior proporção de mulheres entre magistrados (48%) de todo o Brasil.

Os tempos do Brasil Império ficaram para trás. O papel da mulher na sociedade mudou. A conquista de direitos, o acesso ao ensino superior, a maior participação no mercado de trabalho são vitórias importantíssimas. As mudanças, no entanto, não puseram fim a muitas barreiras que precisam ser superadas. A pesquisa Perfil ADV demonstra que as mulheres ainda acumulam a maior parte dos cuidados com outros membros da família e com os afazeres domésticos. Entre elas, a participação de mães solo é de 26%, ou seja, uma a cada quatro advogadas. Entre os responsáveis homens, esse percentual é de apenas 8%. Elas também são maioria entre aqueles que optam pelo home office (46%). Entre os homens, o percentual é menor (39%).

A discrepância salarial entre homens e mulheres é outro problema. O 1º Relatório de Transparência Salarial, divulgado pelo Governo Federal este ano, revela que, no Brasil, as mulheres ganham 19% a menos do que os homens. Na advocacia, a presença delas é maior nas menores faixas de rendimento. No grupo dos homens, por exemplo, 27% recebem até dois salários mínimos mensais. Entre as mulheres, esse percentual sobe para 41%. A situação se inverte nas maiores faixas de renda. Entre os profissionais que recebem mais de 10 e até 20 salários mínimos, a participação deles é de 10%, enquanto a delas fica em 5%. Acima de 20 salários, eles ocupam uma faixa de 8% e elas, de apenas 3%.

O machismo observado no discurso do Visconde de Cairu há quase 200 anos ainda permanece vivo e se manifesta por meio da discriminação e do assédio, mesmo quando as vítimas conhecem as leis e os seus direitos. Levantamento feito pelo Datafolha apontou que um terço das advogadas diz já ter sofrido assédio sexual em ambientes de trabalho. A discriminação de gênero também é realidade para 35% das profissionais brasileiras. São situações inadmissíveis, que precisam ser enfrentadas todos os dias pela sociedade.

Nesse aspecto, a advocacia tem dado bons exemplos. A Lei Federal nº 14.612/23 alterou o estatuto e incluiu o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito da OAB. Já a Lei nº 13.363/16 (Lei Julia Matos), estabeleceu direitos e garantias para a advogada gestante, lactante, adotante ou que der à luz, como preferência na ordem das sustentações orais e das audiências. Por mais igualdade, o Conselho Federal da OAB definiu, desde 2021, a paridade de gênero (50%) nas eleições da Ordem.

Na seccional Rio de Janeiro, nada é feito sem a participação da advocacia feminina. A ocupação dos espaços de poder se faz presente na diretoria, nos conselhos, comissões, subseções e em todas as áreas onde são tomadas as principais decisões da Ordem. A OAB-RJ foi pioneira, por exemplo, na criação de uma Diretoria de Mulheres, além de contar com a Comissão OAB Mulher e com a Ouvidoria da Mulher, que, recentemente, inaugurou uma sala de atendimento na sede da Ordem.

Nós, mulheres, somos maioria da população e da advocacia no Rio de Janeiro e no Brasil. O que precisamos é ter maior relevância, maior participação nas decisões importantes do nosso país e da nossa entidade de classe. Temos que ser mais de 17% dentro da Câmara do Deputados e presidirmos mais que cinco das 27 seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. Já provamos que o “ler, escrever e contar” do século retrasado não é mais suficiente. Precisamos acreditar mais em nós mesmas e entender que temos uma força muito maior do que imaginamos. Afinal, a questão hoje não é mais se as meninas precisam do mesmo nível de ensino dos meninos, mas das mesmas oportunidades.


*Ana Tereza Basilio é vice-presidente da OABRJ. Artigo publicado nesta terça-feira, dia 27, no Valor Econômico.

Abrir WhatsApp