10/08/2009 - 16:06

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Artigo: O direito, a ética e a filosofia da linguagem - Máriton Silva Lima

O direito, a ética e a filosofia da linguagem

 

Máriton Silva Lima*

 

 

História da filosofia é a exposição crítica e metódica dos principais sistemas e das mais importantes escolas filosóficas.

 

Do pensamento nascem as ações dos homens. Toda a revolução social ou política tem a sua explicação última num movimento de idéias.

 

E foi tentando explicar o mundo, com as suas concepções nas diferentes fases da inteligência humana, que desfilaram no decorrer da história grandes pensadores, como Sócrates, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Scheler, Bergson, Sartre e tantos outros. 

O pensamento exprime-se no direito através de palavras e escritos, que regulam as relações humanas éticas. Ele está intimamente ligado à linguagem usada pelos aplicadores do direito.

 

 

A filosofia analítica em Cambridge

 

Nos nossos dias, uma filosofia nova, a da linguagem, desenvolveu-se em dois grandes centros, Cambridge e Oxford, razão por que tanto se fala de Cambridge-Oxford Philosophy. 

 

Trata-se mais de um movimento do que de uma escola filosófica, em que o fundador investiga, raciocina, discute e propõe a um círculo, mais ou menos estreito de iniciados, o seu sistema. O que existe de comum entre eles é um tipo de trabalho, que se exerce sobre a língua, para ver como funciona a linguagem.

 

Em Cambridge, Bertrand Russel (1872-1970) foi estudante e professor. Outros nomes de prestígio são George Edward Moore (1873-1958) e Ludwig Wittgenstein (1889-1951).

 

George Edward Moore centrou-se na rejeição do idealismo (1) e na defesa da veracidade do senso comum (2). Na filosofia da ética (3) defendeu o intuicionismo, isto é, a idéia da indefinibilidade do bem, qualidade do que é indefinível, ensinando a fazer filosofia analítica.

 

Seu sucessor foi Ludwig Wittgenstein. Sua primeira filosofia é a do Tractatus Logico-Philosophicus, publicado primeiramente em alemão (4). A sua segunda está focalizada no princípio de uso e na teoria dos jogos de linguagem. Por isso, a função da filosofia é a de descrever os usos que fazemos das palavras e fazer emergir o conjunto de regras que regulam os diversos jogos de linguagem.

 

Em Cambridge, Bertrand Russel, George Edward Moore, Ludwig Wittgenstein, M. E. Johnson, Charlie Dunbar Broad e Frank Plumpton Ramsey sustentaram que filosofia é análise da linguagem e, portanto, do pensamento.

 

A sua revista Analysis propunha-se a publicar breves artigos sobre questões filosóficas circunscritas e definidas com precisão, em vez de abstratas especulações metafísicas.

 

O que é análise? John Wisdom (1904-1993), sucessor de Ludwig Wittgenstein, dedicou-se a analisar o seu conceito. Interessado pelos problemas da arte, da religião e das relações humanas, escreveu com humor (5) sobre as mentes alheias e analisou a aventura metafísica que, para ele, é paradoxo, tentativa de dizer o que não se pode dizer.

Além de John Wisdom, não podem ser esquecidos outros nomes como G. A. Paul, M. Lazerowitz e Norman  Malcolm.

 

Em Cambridge, a característica desse trabalho é a análise filosófica concebida como terapia. Para George Edward Moore, os filósofos tentam dar respostas sem antes ter analisado as perguntas às quais respondem. Para Ludwig Wittgenstein, o filósofo trata de uma questão como uma doença e assim resolve os problemas, desatando os nós lingüísticos do nosso cérebro. Para John Wisdom, a perplexidade filosófica deve ser tratada como na psicanálise.

 

 

A filosofia analítica em Oxford

 

O movimento analítico firmou-se em Oxford, a partir de 1951, inclusive quantitativamente, arrastando milhares de pessoas interessadas em filosofia, enquanto que em Cambridge eles não passavam de poucas dezenas.

 

Gilbert Ryle (1900-1976) escreveu sobre Platão (6) e, muito antes, em 1932, sobre expressões sistematicamente desviadoras (7), mostrando que nelas a forma gramatical não corresponde à estrutura lógica dos fatos.

 

Em Categories (8), diz que o ofício do filósofo se deve exercer sobre a linguagem, para descobrir os erros lógicos, que consistem em atribuir um conceito e uma categoria à qual não pertence.

 

Em Philosophical Arguments (9), propõe-se mostrar a estrutura lógica de um tipo de argumento próprio do pensamento filosófico, que é a reductio ad absurdum, isto é, um raciocínio que consiste em refutar uma asserção, demonstrando que leva a uma conseqüência absurda.

 

Gilbert Ryle exerceu o ofício do filósofo, no seu livro mais conhecido The Concept of Mind (10), onde procura eliminar aquele erro categorial, que gerou o mito cartesiano de corpo e alma.

 

Para John Langshaw Austin (1911-1960), a linguagem comum deve ser tomada em consideração em si mesma, porque é linguagem rica. Ele desenvolve (11) a diferença entre enunciado indicativo, verdadeiro ou falso e enunciado executivo, feliz ou infeliz.

 

No curso dessa análise, ficaram famosas algumas distinções. Quando se usam palavras segundo certo vocabulário e determinada gramática, cumpre-se um locutionary act; ao dizer algo (by saying something), realiza-se um illocutionary act direto, que John Langshaw Austin chama de illocutionary forces. Mas, se in saying something, realiza-se um illocutionary act, com o dizer algo, realizamos um perlocutionary act, através do qual produzimos determinados efeitos sobre os outros. Nós os convencemos, surpreendemos, informamos, enganamos etc. Essas distinções constituem um patrimônio comum dos filósofos analíticos, assim como o seu apelo à linguagem comum e à visão da finalidade de análise.

 Ao lado de Gilbert Ryle e John Langshaw Austin, também se destacam em Oxford os nomes de Peter Frederick Strawson, Alfred Jules Ayer, Stuart Newton Hampshire, Herbert Lionel Adolphus Hart, Stephen Edelston Toulmin, Richard Mervyn Hare, Isaiah Berlin, David Pears, Alan Montefiore, Geoffrey Nowell Smith e Geoffrey James Warnock.

 

A atenção à linguagem comum é mais ou menos constante na filosofia de Oxford. Mas Richard Mervyn Hare, Alan Montefiore, Herbert Lionel Adolphus Hart, Geoffrey Nowell Smith, Geoffrey James Warnock e Stephen Edelston Toulmin mostraram-se interessados pelo problema ético, isto é, a análise da linguagem moral, assim também pela linguagem jurídica e política.

 

Nos seus livros Thought and Action (12) e Freedom of the Individual (13), Stuart Newton Hampshire (1914-2004) indagou a questão da liberdade individual e de sua relação com o conhecimento. Para ele, quanto mais conheço a minha mente, mais estou em condições de agir de modo livre e consciente.

 

Peter Frederick Strawson (1919-2006), in Introduction to Logical Theory (14), propôs-se a destacar alguns pontos de contraste e de contato entre o comportamento das palavras na linguagem comum e o comportamento dos símbolos em um sistema lógico. Em Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics (15), diz que metafísica descritiva é a descrição dos conceitos de fundo com os quais nos relacionamos com a realidade.

 

Essa metafísica de Frederick Strawson, de certa forma, é um retorno a Immanuel Kant (1724-1804), por via lingüística: o a priori de Immanuel Kant é projetado nas estruturas lingüísticas em Frederick Strawson pois, sob todas as gramáticas portadoras das diversas línguas, há uma gramática mais profunda, que reflete os aspectos universais da experiência humana. Essa, a tarefa dos filósofos.

 

Esse projeto não teve a concordância de Alfred Jules Ayer (1910-1989), autor de Language, Truth and Logic (16), livro que foi o verdadeiro clássico do neopositivismo na Inglaterra, onde aparece profundamente interessado pelos problemas do conhecimento, por ele analisado através da linguagem. Aí afirmou que existe um perigo em seguir a Immanuel Kant, perigo de sucumbir a um tipo de antropologia apriorística e presumir que certas características fundamentais do sistema conceitual próprio de nós são necessidades de linguagem, o que é o equivalente moderno da necessidade de pensamento.

 

No espírito do convencionalismo lingüístico, situa-se o pensamento de Friedrich Waismann (1896-1959), que iniciou seus trabalhos filosóficos como neopositivista. Mas no seu ensaio sobre a probabilidade (17), publicado em Erkenntnis, 1930 e na sua introdução ao pensamento analítico (18), rejeita decididamente a idéia de que a matemática se possa basear na lógica.

 

Esse convencionalismo permeia toda a filosofia de Friedrich Waismann. Basta recordar o seu ensaio Verifiability, onde sustenta que uma experiência "fala por" ou "fala contra", "mais fortemente", "corrobora" ou "enfraquece" uma proposição, mas nunca a aprova ou desaprova. Numa série de artigos inacabados sobre Analytic-synthetic (1949-1952) publicada na revista Analysis (19), opõe-se à tendência dos filósofos da linguagem em acentuar as regras e a correção. Ele tenta eliminar as barreiras que separam tipos de proposições, pois a correção é o último refúgio daqueles que não têm nada que dizer.

 

Não quer atribuir à filosofia uma função puramente terapêutica, mas vê nela um elemento criativo, que leva a destruir as ferrugens lingüísticas que nos paralisam.

 

                         

Filosofia analítica e a linguagem ética

 

Os neopositivistas não dedicaram particular atenção aos problemas da ética. Rudolf Carnap, Richard. von Mises, Hans Reichenbach, e Alfred Jules Ayer foram rígidos emocionistas. Para eles, os valores são expressões de sentimentos. Isso, apesar de Friedrich Albert Moritz Schlick (1882-1936) propor um hedonismo social em seus problemas de ética (20) e Victor Kraft (1880-1975), nos seus fundamentos de uma teoria científica dos valores (21), antecipar alguns dos resultados das investigações realizadas pelos analistas sobre o discurso ético.

 

Mais atento ao problema social, Charles William Morris 1901-1979), nos seus sinais, linguagem e comportamento (22), investiga se o discurso, que avalia as ações que devem ser proferidas do ponto de vista de algum grupo e visa  a induzir a essas ações, está muito mais próximo do discurso que habitualmente é reconhecido  como de caráter moral.

 

A posição do Ludwig Wittgenstein do Tratactus é bem singular. Para ele a ética não pode ser dita cientificamente. Ela muito mais se mostra em uma forma de vida, que é o que verdadeiramente conta para nós, pois querer enunciar proposições de ética significa lançar-se contra os limites da linguagem. Mas esse choque, diria Ludwig Wittgenstein mais tarde, em suas conferências sobre a ética (23), é documento de uma tendência no espírito humano que não se pode deixar de respeitar profundamente e que nunca se deveria lançar ao ridículo, ao custo da própria vida. O sentido do Tratactus é sentido ético.

 

Em Cambridge e Oxford a análise da linguagem ético-jurídica estava entre as investigações mais praticadas, apesar de a metaética não constituir a ocupação primária dos neopositivistas.

 

George Edward Moore é o grande refutador da ética naturalista, da ética que, entendendo o bem como propriedade de coisas naturais, comete a falácia naturalista (24).

 

Para enfrentar esses males, Charles Leslie Stevenson (1908-1979), num trabalho sobre ética e linguagem, propõe-se a esclarecer o significado dos termos éticos (25) como bom, reto, justo, obrigatório etc., bem como indicar os métodos gerais com que provar ou sustentar os juízos éticos. Os termos éticos são portadores de duplo significado: significado descritivo um e significado emotivo outro. Donde se pode concluir que o emotivismo de Charles Leslie Stevenson é algo mais articulado e sério do que a fúria iconoclasta protoneopositivista.

 

Geoffrey James Warnock, num trabalho recente (26), mostra que o emotivismo movia-se em meio a enormes dificuldades. Assim, se é verdade que os juízos éticos são instrumentos sociais para o controle, a orientação e a modificação dos comportamentos, então o emotivismo não consegue apresentar a caracterização distintiva do discurso moral. Os anúncios, a propaganda televisiva, os discursos políticos ou a lavagem cerebral criam uma influência e modificam os nossos comportamentos. Por isso, não é necessariamente verdadeiro ou nem sempre é verdadeiro que o objetivo do discurso moral seja o de criar uma influência e fazer mudar um comportamento.

 

Diante de tudo isso é que Richard Mervyn Hare (1919-2002), na sua linguagem da moral (27), tentou superar as dificuldades do emotivismo. Sua tese principal é que as normas são prescrições e o que têm em comum com elas é quando dizem algo a alguém, mas o que as diferencia das descrições é quando se dá um imperativo a alguém. 

Prescrições são normas de ação (guidance). Os simples imperativos distinguem-se das normas morais, pelo fato de serem estas universalizáveis. Assim, o imperativo "saia" não significa que eu, em outra ocasião análoga à passada, não possa também dizer "não saia". O juízo "deves restituir o dinheiro" é universalizável, porque se eu me empenho nesse juízo no teu caso particular, então me empenho no sentido de que cada um - inclusive eu mesmo, o que é mais importante - deva agir daquele modo nas circunstâncias em que estás agora. 

 

 

*Máriton Silva Lima é advogado.

 

Artigo publicado em Jus Navigandi, em 10 de novembro de 2007, sob o número 1592.

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