01/10/2018 - 10:00 | última atualização em 28/09/2018 - 20:06

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#30AnosdaCF88: Quando a Constituição não vale pra todos?

redação da Tribuna do Advogado

         Arte: Raphael Carneiro  |   Clique para ampliar
 
Vitor Fraga
Em comemoração pelos 30 anos da promulgação da Constituição Federal, publicaremos ao longo da semana uma série de reportagens enfocando diferentes aspectos da Carta Magna, seu legado, desafios futuros e sua real efetividade na vida cotidiana dos cidadãos brasileiros.
 
Nesta primeira matéria da série, abordaremos justamente a questão da (falta de) aplicabilidade das garantias constitucionais para uma parcela da população.
 
No dia 5 de outubro de 1988, após 20 meses de debates, a chamada Constituição Cidadã entrou em vigor. Na época, havia um forte sentimento de que a Carta estabelecia garantias e direitos fundamentais que assegurariam o encerramento definitivo do ciclo de autoritarismo que vigorou no país durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Ao encerrar seu discurso na ocasião, o então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, declarou que estava promulgado “o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil”, e completou: “Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!”.
 
Passadas três décadas, é inevitável concluir que, para uma parte da sociedade, a promessa ficou apenas na intenção. Segundo informações disponíveis no site da Câmara dos Deputados, há 119 dispositivos do diploma legal que ainda carecem de regulamentação, mesmo no que tange aos direitos fundamentais. Desses, 91 são objeto de propostas legislativas em tramitação, e 28 sequer possuem projetos nesse sentido.
 
Divulgado em setembro desse ano, um relatório parcial do projeto Circuito Favelas por Direitos apontou a prática de 30 tipos de violações de direitos cometidos pelas Forças Armadas e pelas polícias durante o período da Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio. O monitoramento, coordenado pela Ouvidoria Externa Defensoria Pública do Rio de Janeiro, ouviu mais de 300 relatos anônimos e espontâneos de moradores de 15 comunidades do estado, que foram divididos em cinco tipos: violação em domicílio, abordagem, letalidade provocada pelo Estado, operação policial e impactos e, por fim, relatos de furtos ou roubos cometidos por agentes de segurança, danos ao patrimônio, violência sexual, extorsão, ameaças/agressões físicas, execuções, disparos a esmo e outros. Agressões físicas e verbais foram relatadas em todas as comunidades percorridas, segundo o ouvidor-geral da Defensoria, Pedro Strozenberg.
 
Favelas: “terra sem lei”?
Foto: Lula Aparício |   Clique para ampliar
Na opinião do presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da OAB/RJ, Marcelo Chalréo, as favelas são de fato territórios onde impera o Estado de exceção, mas não se pode dizer que sejam “terra sem lei”. “Existem leis para todos, e em certa medida nossos irmãos e irmãs que vivem nas favelas precisam cumpri-las também. As periferias do Brasil sempre foram regiões onde imperou e continua imperando o Estado de exceção, um Estado racista, que não se liberta de seu caráter escravocrata. A chamada guerra às drogas é a justificativa para a ausência de garantias aos direitos coletivos e individuais da população frente à ação do poder estabelecido”, analisa.
 
"Nenhuma Constituição brasileira serviu para os pobres e miseráveis"
         Marcelo Chalréo
 
Para Chalréo, o que está por trás dessa política é um controle social de classe. Ele cita como exemplo as arbitrariedades cometidas por agentes de segurança que atuam na intervenção federal no estado, corroborando as denúncias apontadas no estudo coordenado pela Defensoria Pública. “Nas favelas de todo o país, em especial em nosso estado, nunca deixou de existir a intervenção militarizada por parte do Estado. Nem mesmo a Constituição de 1988 foi capaz de mudar essa realidade. A invasão de domicílios sem mandado, as coações e agressões aos cidadãos, autos de resistência, chacinas acobertadas ou não, tudo isso tem como pano de fundo esse controle social das ‘classes perigosas’, de um Estado que nunca se preocupou em de fato elevar essas pessoas à categoria de cidadãos. Nenhuma Constituição brasileira serviu para os pobres e miseráveis”.
 
Nesse contexto, direitos fundamentais como a presunção de inocência estão entre os mais violados. Nas palavras do presidente da CDHAJ da Ordem, a presunção de inocência “é um direito democrático burguês, garantido apenas para uma parcela ínfima da população brasileira”, o que seria “uma demonstração cabal da absoluta inaplicação da Constituição brasileira no que diz respeito aos direitos comezinhos da cidadania”.
 
Foto: Bruno Marins |   Clique para ampliar
O presidente da Comissão de Segurança Pública da Seccional, Breno Melaragno, concorda que, infelizmente, a Carta não vale para todos. “No aspecto criminal, sem dúvida muitas garantias constantes nela não incluem uma série de pessoas, principalmente negros pobres e favelados. Os casos corriqueiros enfrentados por um juiz de uma vara criminal do Rio de Janeiro versam, majoritariamente, sobre situações que envolvem um ‘preto pobre favelado’, falando claramente, em geral preso em flagrante por tráfico de drogas ou roubo. Na prática processual real, se ele não provar sua inocência ele será condenado. O ônus da prova é invertido, ou seja, a presunção é de culpa”, aponta. Segundo Melaragno, o acusado será condenado se não provar sua inocência, a menos que pertença a outro grupo social. “Fora desse perfil social de pessoas negras, pobres e faveladas, a presunção de inocência vale. Isso não é uma opinião ideológica, são fatos”.
 
O ônus da prova é invertido, ou seja, a presunção é de culpa
Breno Melaragno
Ele ressalta que não apenas a presunção de inocência não é aplicada aos moradores desses locais, mas várias outras garantias e direitos fundamentais igualmente não são. “Tudo o que é garantido na Constituição em prol da pessoa humana não é aplicado pelo Estado nas favelas, nos bolsões de miséria. Esse talvez seja o maior desafio do Brasil, acabar com esses bolsões, porque enquanto existirem continuarão sendo excluídos das garantias da Constituição, do saneamento básico até a presunção de inocência”.
 
Se a prisão é o caminho mais comum, o devido processo legal seria a última garantia de que o cidadão terá seus direitos fundamentais respeitados. Nesse sentido, a realização das audiências de custódia, obrigatória desde 2015, seria uma forma de garantir que ninguém permaneça preso injustamente.
 
Melaragno defende que a medida tem sido eficaz. “Demorou bastante para que as audiências de custódia fossem implementadas no Brasil, mas graças principalmente ao Conselho Nacional de Justiça felizmente hoje estão sendo aplicadas em todo o Brasil. É um instituto penal que exerce um controle eficaz e imediato sobre a atuação policial, porque o Judiciário verifica as condições da prisão e decide em 24h se a mantém ou não. E isso tem trazido bons resultados, é um aspecto que garante um mínimo de direitos”, argumenta.
 
No entanto, para Chalréo, as audiências de custódia “só funcionariam em um Estado que tivesse garantias constitucionais e cidadãs minimamente vigentes para a grande maioria da população”. “Segundo estatísticas das defensorias públicas, cada vez menos pessoas são liberadas após as audiências de custódia. A aplicação em um Estado policial como o nosso é reduzida. Isso para não mencionar o fato de que a audiência de custódia é um direito que cabe ao sujeito que é preso, e parte da população das favelas simplesmente é morta ou desaparece. Fazer pessoas desaparecerem é uma prática antiga do Estado brasileiro”.
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