02/10/2018 - 10:00 | última atualização em 02/10/2018 - 09:13

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#30AnosdaCF88: Modernização ou retrocesso?

redação da Tribuna do Advogado

              Foto: Lula Aparício  |   Clique para ampliar
 
Eduardo Sarmento
Concebida em 1988 como um avançado conjunto de normas no âmbito das garantias individuais, a Constituição Cidadã completa três décadas de vigência cercada de polêmicas relacionadas a questões que afetam diretamente a renda da população, seja na forma de trabalho ou de aposentadorias e pensões. Em vigor desde novembro de 2017, a Reforma Trabalhista é alvo de mais de 20 ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), enquanto a Reforma Previdenciária, ainda em tramitação, já desperta a preocupação de profissionais da área. Vendidas como modernizações legislativas pelo Poder Público, ambas são consideradas retrocessos por diversos especialistas.

O desfecho do período ditatorial no Brasil, entre o fim dos anos 1970 e meados dos anos 1980, foi marcado pelo alinhamento de forças progressistas a fim de reformar as normas gerais que regiam o país. A anistia política, o fim da censura, a liberdade de opinião e de reunião foram algumas das bandeiras de movimentos antiditatoriais implantadas no período que demonstravam as novas premissas do país democrático que emergia.

No âmbito das relações de trabalho, os avanços com a nova Constituição foram grandes, frutos da correlação de forças favorável aos trabalhadores naquele momento. Vale lembrar que sindicatos e partidos políticos representativos dos trabalhadores atuaram de forma decisiva na luta pelo restabelecimento da democracia.
 
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Segundo o presidente da Comissão de Justiça do Trabalho (CJT) da OAB/RJ, Marcus Vinicius Cordeiro, a expressão desta força pode ser observada, principalmente, nos artigos 7º e 8º da Carta Magna, no capítulo que trata dos Direitos Sociais. "As forças do trabalho ganharam proteção constitucional, tendo vingado a ideia de que a melhoria da condição social da população é o objetivo maior de toda a sociedade", explica. Cordeiro destaca a ampla liberdade sindical implementada pela Constituição de 88 como outro fator de fortalecimento de diversas categorias, seja em âmbito judicial ou administrativo.

A alteração em mais de cem artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) promovida pela Lei 13.467/17, a Reforma Trabalhista, resultou em uma enxurrada de críticas e contestações no Poder Judiciário. Para muitos, o que acontece é uma tentativa de desmonte da Justiça do Trabalho. "Ao longo dos últimos 30 anos, a segurança constitucional dada aos trabalhadores enfrentou críticas, especialmente de setores empresariais descontentes com o que entendiam ser um elevado número de garantias e a impossibilidade de flexibilização", explica Cordeiro.
 
Entre os principais alvos de ADIs estão o fim da contribuição sindical obrigatória, os limites impostos a indenizações por danos morais, a instituição do trabalho intermitente e o pagamento de honorários periciais e advocatícios de sucumbência pelo trabalhador. Em 1º de setembro, o Conselho Federal da OAB ingressou com ação que questiona a exigência de indicação de valor demandado na ação trabalhista em momento anterior até mesmo à apresentação da contestação e à juntada de documentação por parte do empregador.
Foram promovidas a insegurança jurídica e a precarização das relações de trabalho
Marcus Vinícius Cordeiro

Um dos principais argumentos que pesaram a favor da efetivação das mudanças na legislação foi a necessidade de modernização da CLT para a geração de empregos e dinamização da economia. Para Cordeiro, segmentos interessados aproveitaram-se de um momento de incerteza para atuar, "sobretudo após o rompimento democrático imposto pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff". Além de questões específicas da nova lei, ele critica a falta de debates para a efetivação das mudanças. "Sob argumentos não comprovados de que as medidas seriam necessárias, foram promovidas a insegurança jurídica e a precarização das relações de trabalho. Tudo isso com um déficit democrático nas discussões. Sem a participação dos maiores interessados, os trabalhadores, foi consagrada a prevalência do negociado sobre o legislado, permitindo que direitos históricos sejam ignorados, revistos e reduzidos em face de disposições normativas firmadas por sindicatos nem sempre fortes e representativos", afirma. 

O presidente da CJT cita a possibilidade de horas extras trabalhadas em casa sem pagamento, a restrição do acesso à Justiça do Trabalho e a permissão de trabalho insalubre para a gestante como exemplos de retrocessos advindos da aprovação da lei, que considera decisiva para a deterioração das condições de vida da população. "Por conta do descompasso entre os direitos previstos na Constituição Federal e as possibilidades de não aplicabilidade destes mesmos previstas na Lei 13.467/17, diversas entidades nacionais de juízes trabalhistas, da Procuradoria do Trabalho, da advocacia e até mesmo o Tribunal Superior do Trabalho já se manifestaram publicamente sobre o tema. A decantada modernização não veio, o desemprego cresceu, e a precarização das condições de trabalho aumenta a olhos vistos. Certamente, com grande colaboração da Reforma Trabalhista", atesta.

Mudanças na previdência também geram preocupação

Sob o mesmo véu de modernização legislativa fundamental, a Proposta de Emenda Constitucional 287/2016, também conhecida como a PEC da Reforma da Previdência, foi apresentada pelo Governo Federal no final de 2016 e pretende alterar substancialmente os requisitos atuais para a obtenção da aposentadoria, bem como de diversos benefícios previdenciários. Uma das principais mudanças é o aumento da idade e do tempo mínimo de contribuição para que o trabalhador tenha direito à aposentadoria integral. 

A Previdência Social passou por várias fases no Brasil desde o século XVIII: primeiro por um regime privado e facultativo, de caráter mutualista; depois pelo regime securitário obrigatório; e, por fim, houve sua afirmação como um sistema de seguridade social, com novas luzes e conceitos, a fim de aumentar os riscos cobertos, melhorar suas prestações, universalizar sua cobertura e transferir ao Estado a responsabilidade global pelo custeio das prestações por intermédio de impostos.
 
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"Foi com este animus que o constituinte de 1988 definiu a Previdência Social como um sistema integrante do fisiologismo do Estado. Grandes foram as conquistas do povo brasileiro em termos de proteção social no decorrer de sua evolução histórica, pois partimos de um panorama de total falta de garantias para chegarmos a um estado de bem-estar e justiça social", explica a presidente da Comissão de Previdência Social e membro da Comissão de Previdência Complementar da OAB/RJ, Suzani Ferraro. 

Atualmente, o sistema de Previdência Social não supre, muitas vezes, as necessidades reais dos aposentados brasileiros. Uma eventual aprovação da PEC dificultará a conquista de benefícios nessa área. "É impensável que um trabalhador precise exercer suas atividades até os 65 anos de idade após contribuir por 40 anos para que possa se aposentar. Parece inimaginável, mas é o que consta no texto da proposta", critica Ferraro, destacando que "caberá aos próprios trabalhadores uma mudança de cultura em relação às prioridades futuras, encarando uma nova realidade na qual possam criar o hábito de poupar ou investir para que tenham um futuro mais confortável". 
É preciso esclarecer para a sociedade que a Previdência Social não é gasto, e sim investimento
Suzani Ferraro
 

Além de apresentar vulnerabilidades pontuais, a PEC, que está em tramitação no Congresso e tem previsão de votação até o início de 2019, vem sendo criticada também de forma ampla, sendo tratada como um retrocesso. "As propostas não reestruturam o sistema previdenciário. É preciso esclarecer para a sociedade que Previdência Social não é gasto, e sim investimento", opina Suzani Ferraro, lembrando que o Estado deve, em tese, garantir diversos direitos sociais.

Caso não possam mais contar com a Previdência Social, restarão aos trabalhadores poucas alternativas. A expectativa de Ferraro é de que a PEC sofra alterações de modo a oferecer possibilidades de retorno seguro à responsabilidade individual, com cada indivíduo sendo responsável por garantir sua própria provisão para o futuro. Ela considera a previdência complementar o melhor caminho para a implementação dessas mudanças, mas alerta para as diferenças entre os modelos existentes. "Essa efetivação só será concretizada por meio da previdência complementar fechada, os fundos de pensão, que não possuem finalidade lucrativa e se alinham melhor com os objetivos de ordem social previstos no artigo 193 da Constituição: a justiça social e o bem estar dos trabalhadores", detalha.

Ela afirma que a previdência complementar aberta apresenta maiores custos e riscos para o trabalhador e critica a falta de informações que muitas vezes caracteriza este mercado. "Muitas entidades deveriam estar inseridas no sistema de mercados de capitais e não no previdenciário. Enquanto a previdência fechada se preocupa com a segurança e o futuro dos aposentados, a aberta se apresenta como simples aplicação financeira, apostando no presente e não no futuro. Não podemos permitir que o governo ceda às pressões para igualá-las. As entidades abertas estão vinculadas ao Susep [Sistema Nacional de Seguros Privados] e, como seu órgão regulador, operam agressivamente no mercado de capitais, ocultando muitas vezes informações de como gere o patrimônio do trabalhador. Isso viola princípios basilares inseridos pela Constituição, como a transparência e a segurança jurídica das reservas garantidoras dos planos de benefícios", explica. 

Ferraro constata, no entanto, que apenas mudanças na legislação relativa à previdência não serão eficazes sem a diminuição, por parte do Estado, da desigualdade social. "Sem a resolução de nossos maiores problemas dificilmente haverá uma sociedade capaz de comandar seu próprio futuro previdenciário, É preciso oferecer ao cidadão dignidade plena, com justiça social e o bem-estar dos trabalhadores", defende.
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