03/10/2018 - 10:00 | última atualização em 03/10/2018 - 12:44

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#30AnosdaCF88: o meio ambiente e o direito à terra

redação da Tribuna do Advogado

          Arte: Flávia Marques  |   Clique para ampliar
 
Nádia Mendes
A Constituição de 1988 foi constituída para ser um instrumento do fortalecimento da cidadania. A Carta Magna foi chamada de cidadã não à toa, mas porque os princípios valorizadores do ser humano e da vida, sob todas as formas, são o que a norteiam. A Constituição trouxe a ideia de que o meio ambiente envolve uma concepção multifacetária, que compreende o meio ambiente natural, no artigo 225; o cultural, nos artigos 215, 216 e 216-A; o artificial, nos artigos 182 e 183, que abarcam o espaço urbano; e o de trabalho, no artigo 200, inciso VIII. A Carta abrangeu a proteção ao meio ambiente e o incluiu no rol dos direitos humanos fundamentais, entendendo que não basta apenas o direito à vida, mas que é preciso uma vida com qualidade.
 
Foto: Bruno Marins|   Clique para ampliar
Para o presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ, Flávio Ahmed, a Constituição foi além também ao instituir os instrumentos processuais destinados à preservação. “De nada valeria a proteção ao meio ambiente se não se criasse uma plêiade de mecanismos processuais adequados à salvaguarda desse direito”, explica. Ahmed reforça que o texto constitucional impõe o papel de conferir efetividade às suas normas ao Estado e a todos os seus intérpretes, o que inclui o cidadão e organizações não governamentais, por exemplo.

Segundo ele, os patrimônios culturais eram tradicionalmente enxergados como bens de valores históricos ou estéticos suscetíveis de reconhecimento exclusivo pelo Poder Executivo. Ao serem reconhecidos como parte integrante do meio ambiente a ser protegido, eles passaram a ser importantes pelo significado que possuem para os diversos grupos formadores da multiplicidade étnica e cultural brasileira. “A cultura passa a ser enxergada como valor e a titularidade desse bem como pertencente à população”, explica. “O ser humano aparece dotado de uma dupla faceta: natureza e cultura, ambas diretamente relacionadas à sua qualidade de vida, ambas umbilicalmente relacionadas, inclusive porque a própria ideia de proteção da natureza decorre de uma percepção cultural”, defende Ahmed.
A própria ideia de proteção da natureza decorre de uma percepção cultural
Flávio Ahmed
 

E sobre o futuro? Ahmed acredita que alguns pontos precisam ser aprimorados, mas que já existem esforços nesse sentido, como a inclusão do artigo 216-A, que criou o Sistema Nacional de Cultura. Outra questão em discussão é a inclusão de alguns biomas, como o cerrado, a caatinga e os pampas, no rol do patrimônio nacional objetos de proteção. “Já existem projetos de emendas constitucionais que objetivam esta inclusão. A OAB tem ressaltado a urgência dessa definição, uma vez que estes biomas têm sido gravemente ameaçados pelo desmatamento”, pontua Ahmed, lembrando que é preciso ter cautela nas modificações, para que não se atente contra a coerência normativa. “A maior parte da sociedade brasileira se encontra excluída do imenso rol de direitos salvaguardados pela Constituição. A tarefa de maior envergadura me parece, portanto, incluir as pessoas no pacto constitucional, tornando o direito ao meio ambiente efetivo para que o cidadão brasileiro possa viver com dignidade e com qualidade de vida, numa sociedade plural, democrática e com mais igualdade”, defende.
 
A terra como um direito
 
A interpretação do texto constitucional deve levar em consideração as mudanças ocorridas nos últimos anos
Frederico Price Grechi
A Constituição dedicou um capítulo à chamada política agrícola e fundiária e à reforma agrária e fixou parâmetros para o cumprimento da função social da propriedade rural com a indicação de alguns requisitos, previstos no artigo 186, como a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente, por exemplo. “Em caso do não cumprimento, o constituinte conferiu à União a competência para promover a desapropriação por interesse social. O legislador vedou a desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade produtiva e da pequena e média propriedade rural, desde que o proprietário não possua outra”, explica o presidente da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ, Frederico Price Grechi.
 
Foto: Bruno Marins |   Clique para ampliar
Grechi também reforça a preocupação do constituinte com a Política Agrícola, já que a atividade agrária, que inclui a agricultura, a pecuária e o extrativismo, está sujeita a fenômenos climáticos e biológicos que independem da gestão dos produtores rurais. “O incentivo à pesquisa e à tecnologia, a assistência técnica e extensão rural, o seguro agrícola, o cooperativismo, são alguns instrumentos para a condução das atividades do setor”, destaca.

O agronegócio, redes contratuais formais e informais que estão em torno da atividade agrícola, representou 21,6% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017. “O setor teve um crescimento exponencial nas últimas décadas. A interpretação do texto constitucional deve levar em consideração as relevantes mudanças fáticas ocorridas nos últimos anos, as quais, definitivamente, alçaram o Brasil como um verdadeiro ‘celeiro do mundo’”, defende Grechi.

O principal desafio para os próximos anos, segundo Grechi, é construir uma harmonia. “Temos os interesses legítimos dos produtores rurais, dos trabalhadores, das comunidades tradicionais, dos consumidores e da proteção ao meio ambiente com vistas à garantia do desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

A Constituição também tratou de outros importantes temas relacionados ao Direito Agrário, como por exemplo os povos indígenas e as comunidades quilombolas. Estes temas têm sido objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O STF julgou os embargos da Petição (PET) 3388 e garantiu os direitos constitucionais dos povos indígenas e a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Porém, os ministros reforçaram, na época, que a decisão não tem efeito vinculante e não se estende a outros litígios que envolvam terras indígenas.

Terras remanescentes de quilombos: reflexos da escravidão

Antes excluído das normas jurídicas brasileiras, o termo quilombo surge na Carta de 1988 impondo a promoção e implementação de políticas afirmativas, garantindo aos remanescentes de quilombos o direito à propriedade de suas terras.
 
Foto: Bruno Marins|   Clique para ampliar Para a 1ª secretária da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Brasil (Cevenb), Flávia Ribeiro, é importante lembrar que após a abolição da escravatura não foram oferecidas condições para que a população negra vivesse de forma digna. “Ao negro liberto nada foi oferecido, nenhuma garantia à liberdade foi dada”, ressalta, lembrando a constante luta dos quilombolas e negros por direitos e igualdade. “As comunidades quilombolas traduzem um símbolo da luta, conseguindo que o Estado passasse a legislar garantindo e efetivando seus direitos à propriedade”, destaca.

Segundo ela, apesar de a Constituição trazer normas com intuito de construir igualdade, esses objetivos não foram alcançados de forma imediata, “Há embaraços para que a titulação das terras de comunidades quilombolas se efetivem”, afirma. Atualmente o reconhecimento da titulação se dá por meio do Decreto Federal 4887/2003, que regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Em 2012, o decreto foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, mas teve sua validade declarada em 2018, garantindo, com isso, a titulação das terras. “A efetividade dos direitos referentes a questão quilombola esperam por décadas para atingir os objetivos por eles alcançados”, pontua.
 
Os direitos referentes a questão quilombola esperam por décadas para serem efetivados
Flávia Ribeiro
 
De acordo com Ribeiro, na prática essa concretização sofre entraves. “O processo de titulação tornou-se muito lento, ineficiente, inoperante e burocrático, além da intromissão de terceiros e a grilagem das terras. Hoje existem mais de duas mil comunidades quilombolas que ainda estão brigando para obter o direito de propriedade”, afirma.

Para os próximos anos, ela acredita que serão necessárias políticas públicas e planos de atuação governamental que articulem essas políticas, com o objetivo de alcançar as comunidades quilombolas, cessando a insegurança jurídica e garantindo, não só o direito à terra, mas também os direitos fundamentais dessas populações. “Estes povos estão sempre sob ameaças de perder o território para construção de usinas hidrelétricas, reflorestamentos, criação de parques, reservas biológicas na zona rural e especulação imobiliária em zonas urbanas. O que se faz necessário é a desburocratização de procedimentos de titulação, além da pacificação de conflitos fundiários, jurídicos e políticos, um controle mais eficaz das terras do solo brasileiro através do Estado, que deve garantir os direitos que foram instituídos em 1988”.
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