Conversando com um amigo sobre o desconforto que me provocava o recente caso do Goleiro Bruno, catapultado da agremiação esportiva que o contratara por força do clamor popular e do medo dos patrocinadores do time, fui alertado: nos tempos atuais isso é nitroglicerina pura. 

O desconforto só não foi maior porque a boa conversa com o velho amigo, acompanhada pelo Malbec, me fez ver que se tratava de um conselho, muito mais de um cuidado do que uma tomada de posição sobre o tema. 

Pois bem, o crime bárbaro voltou a ser alvo dos holofotes da mídia: o caso Eliza Samudio, cujo principal condenado pelo assassinato ocorrido foi o então goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes das Dores de Souza. 

É sabido, e a lembrança não peca, que após uma longa investigação, o então conhecido “Goleiro Bruno”, preso em 2010, foi condenado pelos crimes de homicídio, ocultação de cadáver, sequestro e cárcere privado (do filho que teve com a vítima) a mais de 20 anos de prisão. E agora, após cumprir cerca de nove anos em regime fechado, o goleiro obteve a progressão legalmente prevista para o regime semi-aberto domiciliar. 

Assegurada a progressão da pena, o goleiro foi em busca de oportunidades para retornar ao exercício da sua profissão e voltar aos campos de futebol. Não podemos esquecer que o atleta, à época do crime, era conhecido por seu desempenho excelente no esporte, tendo participado da conquista de títulos, dentre eles os campeonatos Brasileiro e Carioca e as taças Rio e Guanabara, além de ter sido eleito como melhor goleiro em algumas premiações. Não por acaso foi popularmente chamado, antes de Bruno, de goleiro, tamanha relevância na sua profissão. 

Assim, na tentativa de se ver reinserido no mercado de trabalho, que é inclusive uma das condições da efetividade da progressão concedida, Bruno aceitou a proposta do time Operário de Várzea Grande/MT. 

Foi este o start da mobilização popular para que o clube voltasse atrás na decisão. Para alguns, a contratação do goleiro condenado pelo homicídio de sua ex-companheira representa verdadeiro retrocesso à luta feminista contra o feminicídio. O argumento das manifestantes era o de que a volta de Bruno ao futebol era prova de que o machismo venceria mais uma vez ao dar a chance de um feminicida voltar a ser ídolo no país do futebol. 

Lamentavelmente, a meu ver, o clube voltou atrás e cancelou a contratação do goleiro. 

Não se percebeu que antes mesmo do inegável direito individual do Goleiro Bruno ao trabalho está o direito à ressocialização do sentenciado em geral, propiciando-lhe a oportunidade de voltar ao convívio social. 

Há de se perguntar, então, se para além das sanções penais já “pagas” por Bruno, também lhe cabem sanções sociais e trabalhistas? O mesmo tipo de movimentação já havia ocorrido em 2017, quando o STF decidiu o habeas corpus do goleiro, que foi contratado pelo Boa Esporte (Varginha/MG) e negociou com o Poços de Caldas (MG), que, igual ao Operário, voltou atrás e não contratou o goleiro. 

Não percamos de vista que o direito ao trabalho é garantido pela Constituição em seu artigo 6º: 

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

 Impedir que um profissional retorne ao seu ofício, na forma autorizada por lei, após cumprir quase 50% da pena em regime fechado, seja diretamente ou indiretamente, por força da sanha popular é, sobretudo, andar na contramão do discurso de ressocialização que há tempos vem sendo pregado, inclusive por aqueles que agora exigem a não contratação do goleiro. 

Afinal, não é plausível exigir ou tampouco escolher em qual área de trabalho o retorno é “aceitável”. O julgamento já aconteceu, a pena está sendo cumprida, sendo certo que todas as movimentações de Bruno com o time contratante são revisadas e autorizadas pela Justiça. E mais, faz-se preciso atentar para o seguinte fato: não há qualquer dispositivo no Direito Desportivo que afaste a possibilidade de um jogador condenado voltar a exercer suas funções após sua liberdade. 

O que mais seria necessário para que o direito ao trabalho fosse garantido a Bruno ou a qualquer outro sentenciado enquadrado no regime de progressão da pena? 

A negação pela negação, despida que está de qualquer proposta racional de inclusão do preso na sociedade através do trabalho, o repúdio ao direito, o desejo inequívoco de punição perpétua e o ódio a quem supostamente não se enquadra no perfeito modelo que a estética social de gosto duvidoso exige do atleta profissional ofendem a consciência daqueles que consagraram o Estado Democrático de Direito na Constituição Federal. 

O medo de um possível clamor popular prenhe de ódio não pode ser maior do que o direito garantido ao sentenciado à ressocialização. 

E seria de um autoritarismo singular, não permitido na sociedade constituída sob o império da Lei, assumir que Bruno poderia, sim, ser reinserido no mercado de trabalho, mas em outra profissão, diferente daquela que exerce desde os 12 anos de idade. Ora, querer escolher o ofício digno ou não de um preso, em regime de progressão de pena é, para além de uma demonstração de alienação, uma dupla condenação! 

O crime em comento não foi praticado no exercício da profissão, assim não há razão plausível para afastar o jogador de suas atividades após o cumprimento da pena em regime fechado ter sido cumprida. Futebol é um esporte, mas também é um trabalho que gera o sustento e, como há muito é dito, “o trabalho dignifica o homem”. Isso não lhe pode ser negado. 

Definitivamente, o que se defende aqui não é o status de Bruno como ídolo, o que seria moralmente questionável, mas tão somente a garantia de uma reinserção no mercado de trabalho, - assim como ora é defendida para os egressos do sistema penal, que lutam diariamente para retomarem suas vidas. 

O medo da sanha popular deve ser combatido com a Constituição Federal, com a Lei. 

Lembre-se que o afastamento do goleiro dos campos de futebol não tem condão de impedir o número alarmante de mulheres que são agredidas no país todos os dias. É preciso escolher bem o alvo das reivindicações, sob o risco de perder-se a razão, como parece ocorrer nesse trágico episódio que nem o tempo consegue apagar. 

Esse artigo teve a inspiração e redação básica da jovem e brilhante advogada Francis Helen Braga que carrega na alma o compromisso com a defesa e liberdade. 

Em tempo: não temos procuração e sequer conhecemos o Goleiro Bruno. 

É tudo uma questão de princípios.

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