Nos últimos dias 13 e 14 de janeiro de 2020, um Congresso Internacional realizado no deslumbrante Museo di Capodimonte, em Nápoles, dedicou-se à recente atribuição a Caravaggio da obra prima Madalena em êxtase, cuja autoria até então se mostrava incerta. A longa e instigante discussão histórica quanto à extraordinária pintura – hoje em exposição temporária em Osaka, no Japão, após exibição em diversos museus europeus, incluindo a maravilhosa exposição em 2018 no Museu Jacquemart-André, em Paris – remete ao interminável debate sobre a relevância (ou não) da autenticidade da autoria na arte para a sua valorização estética. Poderá o falso ser mais reconhecido e aplaudido pelos críticos do que a obra de arte autêntica ou sem a assinatura de um renomado artista?

Dentre tantos falsificadores notáveis, mostra-se sempre digno de nota o holandês Hans van Meegeren, que, ao final da Segunda Guerra Mundial, foi acusado de colaboracionista e condenado à pena capital por suposta venda da tela Meisje met de parel (Moça com um Brinco de Pérola), de Johannes Vermeer, considerada Tesouro Nacional, aos generais nazistas. Para escapar do patíbulo, o falsificador acabou por confessar que, na realidade, havia vendido aos militares alemães um quadro falso, por ele próprio pintado. Meegeren somente logrou convencer o incrédulo magistrado após reproduzir, com irretocável maestria, obras primas de pintores consagrados.

A tênue fronteira da autenticidade na arte – que poderia ser suplantada, a rigor, pela simples legitimidade da beleza, em si considerada – remete à dificuldade, na Teoria da Interpretação, para se estabelecer os limites da apreensão subjetiva do dado normativo pelo magistrado. Se não há verdades absolutas, cresce, na jurisprudência brasileira, o duelo entre, de um lado correntes consequencialistas, que se permitem construir com notável liberdade a solução do caso concreto, por vezes sem o amparo do direito positivo, em função dos benéficos efeitos sociais da decisão; e, de outro, em contrapartida, a reação indignada de magistrados que preferem seguir a letra do texto legal, sem espaços para expansão argumentativa, em nome do império da lei.

A polêmica, de fato, não é nova, mas se intensifica na sociedade contemporânea, líquida – na difusa percepção de Bauman –, em que as verdades se flexibilizam ao sabor de sentimentos ou de ideologias. Roman Polanski, ao lançar o seu último filme, J’acuse, queixou-se do que chamou de pós-verdade: “não há mais verdade – disse o diretor polonês – agora existe o que chamamos de pós-verdade. Apenas emoções importam. A verdade histórica ou científica não tem importância. Dizemos que algo é verdade porque nos convém”.  Pois bem: no plano jurídico, terá desaparecido do direito contemporâneo uma única verdade interpretativa que aquiete o magistrado e possa efetivamente promover a segurança jurídica?

Cuida-se, a rigor, de dilema que não se poderá resolver senão com a busca, pelo intérprete, da racionalidade (não decorrente de suas concepções pessoais, mas) do próprio sistema. Cuida-se de ampliar a vetusta investigação da ratio legis – tradicionalmente utilizada para se perquirir a motivação e os fins de determinada norma – para o conjunto de valores e finalidades do ordenamento como um todo. Nessa direção, os valores constitucionais servem de norte ou leitmotif permanente da teoria da interpretação. Desse modo, independentemente da técnica legislativa empregada, sejam princípios ou regras, cláusulas gerais ou prescrições específicas, a segurança jurídica é alcançada a partir da recondução sistemática de cada norma à legalidade constitucional.

Não se trata, pois, de ter no Texto Constitucional o simples limite para a atuação do legislador, nem mesmo de interpretar as normas infraconstitucionais à luz da Constituição. Cuida-se, a rigor, de incorporar a cada regra de conduta e à fundamentação das decisões a axiologia constitucional, a qual, concretizada pela jurisprudência construída ao longo do tempo, estabelece padrões de comportamento capazes de recuperar a segurança jurídica dispersa na pluralidade de fontes normativas e na argumentação jurídica contemporânea.

Desse esforço hermenêutico certamente não resultará verdade absoluta, mas se assegurará a unidade interpretativa capaz de superar subjetivismos e visões de mundo díspares, expressas em soluções interpretativas de cada tribunal. Afinal, em época de terraplanistas e outros que tais, nada como o apego aos princípios e valores constitucionais como antídoto a desmandos, antibiótico de amplo espectro para recuperar a segurança (perdida?) e a pacificação de devaneios interpretativos.

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