Novo fenômeno urbano espraiou-se desde 2018: a patinete. Em todas as grandes cidades do mundo, ruas, ciclovias e calçadas vêm sendo tomadas por esses engenhos velozes, que reduzem distâncias, contribuem para a redução de energia fóssil e facilitam a vida de muitos. Em contrapartida, parte da população tem se assustado e outros tantos são atingidos, seja por atropelamentos, seja pelos novos obstáculos urbanos representados pelas patinetes largadas no meio das calçadas.  Acidentes têm sido cada vez mais frequentes, gerando a reação mal-humorada de pedestres. Em Paris, recentemente, ao tropeçar em uma patinete jogada no meio da larga calçada do Boulevard Saint Germain, o sujeito reagiu de forma violenta, estraçalhando o objeto contra uma árvore, para espanto geral, enquanto gritava todo o repertório de blasfêmias do idioma francês.

Diante disso, as administrações municipais e os legisladores de vários países têm procurado regulamentar o uso e circulação desses veículos, mobilizando juristas a refletirem, paralelamente, sobre a juridicização do novo meio de transporte e sobre os conflitos atuais ou potenciais daí decorrentes. A questão da responsabilidade civil suscita as primeiras indagações, merecendo algumas reflexões.

Discute-se em primeiro lugar, replicando-se a discussão havida nos acidentes de trânsito em geral, se a responsabilidade é subjetiva. A resposta me parece positiva. Em linha de princípio, não há aqui incidência dos pressupostos do parágrafo único do art. 927, inexistindo grau de risco que justifique a ampliação do espectro de incidência da responsabilidade objetiva – como muitos defendem tão apaixonadamente. A responsabilidade subjetiva, convém registrar, desde o direito romano, é meio adequado (embora não seja o único, evidentemente) para se apartarem as condutas boas das ruins, o joio do trigo, não devendo ser compreendida como obstáculo à reparação. No caso das patinetes, a prioridade há de ser sempre do pedestre: a circulação nas calçadas ou em velocidade excessiva já indicam a culpa do condutor, dentro da perspectiva de culpa normativa, tomada como transgressão do padrão de comportamento exigível para hipóteses semelhantes. Aliás, o simples desrespeito das regras municipais, por exemplo, como aquelas que estão sendo estabelecidas pelo Município do Rio de Janeiro, servem como prova da conduta culposa do condutor, capaz de gerar dano a terceiro, desde que o condutor não comprove algum evento apto a romper o nexo de causalidade.

Em alguns países europeus, tem-se discutido se a patinete pode ser qualificada como veículo automotor, equiparável, portanto, ao automóvel, para fins de incidência de leis, por vezes rigorosas, de trânsito automotivo. Por outro lado, a utilização das patinetes para entrega de mercadorias traz a lume problemas relativos a acidentes de trabalho, às relações de consumo e possível aplicação das normas do contrato de transporte. 

No caso brasileiro, há que se distinguir os acidentes que causem danos a terceiros, cuja responsabilidade é regida pelo art. 186 e 927, caput, do Código Civil, dos acidentes com patinete que caracterizem defeito do produto. Neste último caso, em se tratando de patinetes alugadas, dá-se a aplicação da responsabilidade objetiva prevista pelo art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, inclusive no que tange a terceiros, considerados consumidores por equiparação, nos termos do art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Nessa mesma linha, em favor do consumidor inverte-se o ônus da prova, desde que verossímil o pedido ou caracterizada a hipossuficiência do requerente (art. 6º, VIII, CDC).

Na hipótese de utilização de patinete para transporte de pessoas (menos provável) ou coisas (mais provável), aplicam-se as regras dos arts. 730 e ss do Código Civil, incluindo a responsabilidade objetiva, o que não se confunde, convém repisar, com a responsabilidade subjetiva dos acidentes causados a terceiros por condutores fora de contrato de transporte. Finalmente, no caso de acidentes de trabalho, não parece haver peculiaridade específica em relação às regras próprias da matéria.

Todas essas questões, a rigor, já se encontram previstas pelo legislador brasileiro. Entretanto, não dispensam o esforço de cada condutor para amenizar incômodos que a sua patinete possa representar para os pedestres e transeuntes. Se falta educação no trânsito de ônibus, automóveis, motocicletas e bicicletas, com as patinetes o nosso maior problema certamente não será jurídico. O Direito, a rigor, não pode ter a pretensão de assegurar paz social sem a conscientização de cada indivíduo quanto à importância crucial do convívio harmônico em sociedade. 

Nesse particular, as patinetes largadas pelas calçadas ou circulando em alta velocidade traduzem os padrões de educação da sociedade. E ensejam bom momento para aprimorarmos nossas práticas de organização social. Se os ingleses, na síntese de Tocqueville, ensinaram ao mundo “a arte de se associar”, parece mais que urgente a nossa genuína autocrítica quanto aos modos pouco urbanizados com que, por vezes, lidamos na vida cotidiana em sociedade. Um pouco de cerimônia e gentileza poderiam ser, em boa hora, acrescidas às nossas boas maneiras para que – como a prudência e o caldo de galinha que, na percepção popular, não fazem mal a ninguém – venhamos a poupar o Judiciário dessa judicialização hiperbolizada,  que prospectivamente em nada ajuda,  e que, afinal, não torna melhor a vida em sociedade.

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