O professor Pietro Perlingieri, em recente e inspiradora entrevista¹, sublinhou o impacto das novas tecnologias não somente na responsabilidade civil (momento patológico), mas em todas as categorias incidentes sobre as relações jurídicas e seus efeitos, especialmente no que tange ao comportamento ético dos seus atores. E nem se pense que tal repercussão se projete apenas sobre desafios futuros da inteligência artificial e das clonagens, por exemplo. Basta lembrar a relevante decisão² do Supremo Tribunal Federal que assegurou a imunidade tributária aos livros eletrônicos ou e-books, opondo-se à voracidade fiscal baseada na literalidade da previsão constitucional, circunscrita, à época de sua promulgação, aos livros e jornais impressos.

O tema vem à tona novamente na cobrança de direitos autorais no mundo virtual.  Veja-se o eloquente exemplo das obras musicais. Na atualidade, o principal veículo de execução pública de músicas é a internet. Disponibiliza-se, por esse meio, formidável número de obras musicais, potencializando-se de maneira extraordinária a transmissão. Diante de tal realidade, como remunerar os autores com os direitos autorais devidos? As novas tecnologias, certamente, não devem estimular a ilicitude e sacrificar os direitos autorais. Trata-se de direitos fundamentais dos autores, cujo respeito se associa à preservação da identidade cultural da própria sociedade.

Cada vez mais, vamos nos habituando à terminologia norte-americana do streaming (transmissão de obras musicais e fonogramas via internet) e algumas de suas modalidades: o simulcasting, o webcasting e o podcasting. Tal como no rádio e na televisão, a composição musical transmitida pela internet não se altera, a despeito da diversidade dos mecanismos de difusão. Deve merecer, portanto, a mesma proteção no que tange aos direitos autorais. A matéria foi exaustivamente analisada pela Segunda Seção do STJ, no âmbito do julgamento do REsp nº 1.559.264/RJ (julg. 8.2.2017), tendo a corte decidido, nos termos do voto do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que “a transmissão digital interativa, ou o ‘direito de colocar à disposição do público’, ao fim e ao cabo, é um ato de execução pública”.

Assim entendeu a Segunda Seção do STJ, após longo e democrático processo de audiência pública, proclamando que a transmissão (fluxo de mídia ou streaming) configura execução pública da obra.  Discutia-se se tal utilização dependeria de prévia autorização do autor e se, no caso da internet, tratar-se-ia de execução pública em local de frequência coletiva, como previsto pelo art. 68, §§ 2º e 3º da Lei 9.610/98, de modo a caracterizar modalidade autônoma de transmissão (art. 31). A resposta do STJ a essas indagações foi afirmativa.

No passado, questionou-se se haveria duplicidade de cobrança de direitos autorais nas transmissões de programas idênticos em mais de um veículo (rádio e TV, por exemplo). A jurisprudência mostrou-se firme no sentido de que cada meio de difusão, por representar execução pública específica, propiciaria cobrança autônoma. A hipótese é análoga às transmissões simultâneas em múltiplos ambientes na internet, não havendo bis in idem diante da (ampliação potencial de público decorrente da) proliferação de execuções.

Por outro lado, o fato de que o acesso à internet possa ser efetuado por uma única pessoa em ambiente doméstico não descaracteriza o sítio público de frequência coletiva, que se projeta para número indeterminado de pessoas, de modo a legitimar a cobrança dos direitos autorais. Aliás, discutiu-se há alguns anos se tais direitos poderiam ser cobrados em motéis, hotéis ou ambientes desprovidos de aglomeração popular. A jurisprudência, mais uma vez, assegurou a cobrança, independentemente do número de ouvintes. Na mesma perspectiva, a audição por internauta único em seu computador pessoal ou o compartilhamento coletivo da transmissão não serve de critério diferenciador na aplicação da lei brasileira, já que o fato gerador do direito autoral é a comunicação ao público (execução pública) estabelecida com a transmissão, exposta a público indeterminado em local de frequência coletiva (internet).

Parte da indústria fonográfica, inconformada com tal imposição jurídica e ética, retoma a mesmíssima discussão no STJ, agora sob o argumento de que, no caso do chamado streaming interativo, haveria espécie diversa de transmissão, avessa ao conceito de execução pública. Nessa pretensa modalidade de streaming, recorrente no caso do spotify, por exemplo, o usuário seleciona e retira da programação oferecida o conteúdo que pretende ouvir, on demand, em audição privada. A objeção não serve a afastar a garantia constitucional aos direitos autorais. O número de usuários e o modo de utilização não desnaturalizam a difusão pública, que torna coletiva a transmissão. Afinal, o que caracteriza a execução pública é a transmissão da obra no espaço virtual (streaming), exposta a público indeterminado, alcançando potencialmente todo e qualquer interessado que navegue na internet, local de frequência coletiva.

Afasta-se, de outra parte, a suposta cobrança duplicada (bis in idem) representada pela incidência do pagamento de direitos autorais nas execuções públicas. A arrecadação coletiva é a única forma legal de garantia dos direitos autorais, assegurados constitucionalmente, sendo certo que a autorização contratual para exploração patrimonial de obras musicais, lítero-musicais e fonogramas, além de possuir fato gerador autônomo e distinto, tem sido concedida gratuitamente, as mais das vezes, pela maior parte dos autores brasileiros, em busca de difusão e inserção no mercado fonográfico. A falaciosa duplicidade de pagamentos, nesses casos, configura mero sofisma para evitar o pagamento dos direitos autorais.

Em última análise, como assentado pelo STJ, a execução pública não se dá pelo ato do internauta que acessa o site, mas pelo ato do provedor que disponibiliza ao público o acesso ao conteúdo musical. A nítida distinção entre o espaço público da internet, onde é transmitido o conteúdo digital, e os mecanismos individuais de acesso, por vezes com contas e senhas eletrônicas, serve a afastar também qualquer risco de ameaça à privacidade dos usuários, demarcando bem a fronteira entre a execução pública, sobre a qual incide o direito autoral, e a audição privada.

Trata-se de relevante mudança de perspectiva, que permite ao direito se ajustar à evolução dos fatos, garantindo a função remuneratória do direito autoral, em prestígio do autor e da cultura nacional. Diante de novos bens jurídicos, com estruturas inusitadas, o direito há de proteger a função por eles desempenhada. No caso dos direitos autorais, sua defesa deve ser aspiração social. A criação artística há de ser estimulada, sendo um dos raros setores em que a produção nacional, motivo de justo orgulho para os brasileiros, prescinde de subsídio ou favor estatal. Basta que se respeitem os direitos dos autores.

 

¹ Entrevista Pietro Perlingieri.

² STF, Tribunal Pleno, RE 330.817/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 8.3.2017.

Os artigos publicados no site da OAB/RJ não refletem, necessariamente, a opinião da entidade.