No último dia 12 de agosto de 2019, às vésperas da conversão em lei da MP 881, realizou-se no Superior Tribunal de Justiça, sob a coordenação dos ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Luis Felipe Salomão e da professora Ana Frazão, importante evento dedicado à essa Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Registrem-se dois inegáveis méritos a serem reconhecidos à iniciativa legislativa. O primeiro deles é o debate suscitado acerca das liberdades econômicas e do espaço conferido, em termos práticos, à livre iniciativa. Sem essa reflexão, dificilmente se retomará a tão ansiada agenda positiva, sendo induvidoso que a burocracia estatal e a insegurança jurídica tornaram-se ameaças constantes aos empreendedores. Em segundo lugar, surpreendeu positivamente a capacidade das autoridades econômicas em ouvir especialistas, procurando ajustar o texto, já agora bastante alterado em relação à proposta original. 

Quanto aos impactos no Direito Civil, muitos exemplos do aprimoramento legislativo merecem referência. O texto do art. 2º, ao tratar dos seus princípios norteadores, alterou a referência a presunções, preferindo, de forma mais apropriada, proclamar “a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas”. De igual modo, a supressão da redação pretendida para os arts. 423, 480-A e 480-B do Código Civil é igualmente benfazeja e digna de elogio. Elidiu-se, também, em boa hora, a previsão de danos punitivos prevista no texto original, que atingia, por via oblíqua, todos os alicerces do sistema de responsabilidade civil. 

Em relação à desconsideração da personalidade jurídica, o intuito da MP é restringir sua utilização desmesurada, percebida nos últimos anos. A desconsideração, com efeito, quando excepcionalmente utilizada, mostra-se útil ao combate à gestão empresarial fraudulenta e ao abuso por desvio de finalidade nas atividades econômicas. Quando, ao reverso, se banaliza, sendo utilizada de modo difuso e sem critérios, ameaça a livre iniciativa, constituindo-se em entrave à atividade empresarial e ao princípio da segurança jurídica. No texto atual, aperfeiçoou-se a redação, embora ainda se mantenha como objeto de críticas. Insere-se, por exemplo, o art. 49-A no Código Civil, com linguagem conceitual: “A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. Não parece consentânea com a função normativa a definição de conceitos elementares, sobrepondo-se, assim, à tarefa da doutrina, sem proveito para o sistema. Embora possa se argumentar que o excesso, em certos casos, mostra-se pedagógico (quod abundat non nocet), a conceituação exagerada, no direito privado, frequentemente estimula desacordos semânticos e amplia divergências interpretativas. No âmbito do art. 50 do Código Civil, perdeu-se a oportunidade de simplificar a redação utilizada pela MP. Por outro lado, acolhendo críticas, suprimiu o dolo, constante no texto anterior, da definição do desvio de finalidade, o que é positivo. Já no § 2º do art. 50, ao tentar limitar (desnecessariamente) os comportamentos capazes de caracterizar confusão patrimonial, enumeram-se nos dois primeiros incisos duas situações fáticas, acrescentando-se, no inciso III - “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”. Vale dizer, todo e qualquer ato deverá ser valorado, caso a caso, pelo Judiciário, tornando-se inócuo o dispositivo. 

Por outro lado, a reforma do art. 113, preocupada em dar concretude ao dever de boa-fé objetiva, mostra-se verdadeiramente inquietante. Isto porque, a partir da promulgação do Código Civil, doutrina e jurisprudência, paulatinamente, construíram os padrões de comportamento considerados compatíveis (ou incompatíveis) com a boa-fé objetiva, desde a fase pré-contratual à execução do contrato e até ao período posterior à execução prestacional. Estabeleceu-se, assim, razoável segurança jurídica construída pela argumentação, persuasão e fundamentação de decisões elaboradas ao longo do tempo, na densificação daquela cláusula geral. A MP, em sua versão atual, pretende determinar o conteúdo a ser observado no cumprimento do dever de boa-fé. Além da desnecessária alusão a regras comezinhas de hermenêutica, o parágrafo 1º, incidindo em tautologia, preceitua que “a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (...) III - corresponder à boa-fé”. E que “IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável”. Este último inciso, presente desde o texto original, desconhece que a redação material do instrumento contratual nem sempre é efetuada por quem o concebeu.   

Uma palavra ainda sobre o art. 421, cuja redação, embora aprimorada, preceitua, no parágrafo único, que prevaleça, nas relações contratuais, “o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. Na mesma direção, o proposto art. 421-A, em seu inciso III, dispõe que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”. A rigor, não existe, na ordem jurídica, o princípio de intervenção mínima. Ao contrário, tem-se um conjunto de pressupostos e requisitos, autorizados pela Constituição da República, e incorporados ao Código Civil, para a intervenção judicial. De outra parte, a revisão e a resolução contratual encontram-se previstas nos arts. 317 e 478 do Código Civil, sendo estes os parâmetros norteadores da intervenção judicial nos contratos e que a tornam, só por si, pelo rigor dos requisitos ali previstos, limitada e excepcional. Tais requisitos, com pequenas variações, encontram-se presentes nos países de tradição romano-germânica. Se há exageros em sua aplicação, é preciso mobilizar a sociedade para verdadeira mudança cultural, que certamente não será levada a cabo pelos aludidos dispositivos. 

A despeito de suas imperfeições técnicas, a conversão em lei da MP 881 mostra-se útil, do ponto de vista do direito econômico, para reafirmar as liberdades econômicas no país, refreado por excesso burocrático. Tais postulados de liberdade, contudo, não podem ser interpretados isoladamente. Inserem-se em um conjunto de valores constitucionais que agrega, à liberdade, solidariedade e igualdade; e, à livre iniciativa, o valor social do trabalho e diversos interesses transindividuais, como o meio ambiente equilibrado e o uso racional do solo. Tais valores compõem a ordem pública brasileira e foram consagrados pelo constituinte em 1988. A máquina estatal há de se modernizar; as autoridades públicas precisam introjetar o apoio à livre iniciativa. Não se imagine, contudo, que o Código Civil possa ser o responsável pelas mazelas do empreendedorismo brasileiro, pela falta de empregos ou pela desigualdade social. Do ponto de vista do direito privado, dificilmente se poderá assegurar a liberdade econômica mediante imposição legislativa. Só o genuíno respeito à liberdade com solidariedade e igualdade para todos promoverá a verdadeira liberdade.

Os artigos publicados no site da OAB/RJ não refletem, necessariamente, a opinião da entidade.