As artes têm oferecido consideráveis exemplos de prisão e condenação por erro de reconhecimento. No cinema, o clássico de Alfred Hitchcock “O homem errado” (1956) ilustra magistralmente o risco.

Na vida real, sabe-se lá o número de casos de prisão e condenação de pessoas erroneamente reconhecidas, alguns sem chance de reversão.

Recentemente, há menos de um mês, os meios de comunicação exibiram declaração de um homem que estivera preso por 15 dias, em razão de comprovado “erro de reconhecimento”. Revelou ele à imprensa que, naquele período de tempo, foi, nas suas próprias palavras, “estuprado todo dia”. Sem conhecer os autos, arrisco-me a dizer que o reconhecimento provavelmente não observou inteiramente as prescrições legais.

Para evitar ao máximo o risco de erro judiciário, a lei processual penal dedica todo um capítulo às regras sobre o reconhecimento de pessoas e coisas. Interessa-nos, aqui, o reconhecimento de pessoas.

De minha própria experiência profissional, selecionei dois casos emblemáticos da importância das regras do art. 226 do Código de Processo Penal (CPP).

Em rumoroso caso de chacina, um adolescente reconheceu, por fotografia, um policial civil. Naturalmente, o delegado que presidia o inquérito determinou a realização de diligência de reconhecimento pessoal.

O cliente negava firmemente qualquer participação no triste episódio e dizia não temer o reconhecimento pessoal. Não sem antes alertá-lo quanto às consequências da medida caso o adolescente viesse a reconhecê-lo, requeri ao delegado que presidia o inquérito algumas providências – além daquelas previstas no art. 226, CPP – com vistas a prevenir de qualquer contaminação da prova: evitar que o indiciado fosse visto antes do início da diligência e providenciar a presença de um defensor/curador para acompanhar toda a diligência, no interesse dos direitos do menor e do indiciado.

Seguindo rigorosamente o previsto no art. 226 e seguintes, o delegado pediu ao adolescente que descrevesse tudo que lembrasse da pessoa que ele havia apontado como tendo participado da chacina. Sucede que o indiciado tinha uma característica no rosto que o distinguia de certo modo, e a descrição do jovem foi no sentido inverso! Imediatamente após a descrição, fomos todos – inclusive o curador – levados à sala destinada ao reconhecimento. Com toda a calma, o delegado pediu que o jovem indicasse quem reconhecia. E ele, que acabara de descrever o suposto participante do crime de um certo jeito, não poderia reconhecer ninguém – como de fato não reconheceu – simplesmente porque as regras processuais penais foram seguidas. E a justiça foi feita.

O segundo caso teve lugar no interior do estado. Tratava-se de inquérito administrativo em que um agente da Polícia Federal fora apontado como autor do crime de extorsão.

O delegado da Polícia Federal responsável pelo inquérito presidiu a diligência de reconhecimento seguindo estritamente as regras do art. 226, CPP. Portanto, do ponto de vista processual, nenhuma questão poderia ser arguida. 

Ainda assim, havia um sério risco: tratava-se de cidade pequena, onde praticamente todo mundo conhecia todo mundo. Assim, por hipótese, se um era o dono da padaria; o outro, o farmacêutico; o outro, o dono do posto… o que sobrasse seria “reconhecido” e culpado.

O delegado federal atendeu nosso pedido de registro de tais objeções, mas procedeu à diligência. O resultado foi o esperado. O agente foi “reconhecido”.

Em momento posterior, porém, o registro de nosso protesto foi levado em conta e o resultado foi favorável ao policial federal.

Estas breves considerações talvez sirvam para ilustrar o fato de que a solução de um problema de tamanha importância – o de segurança no reconhecimento de pessoa de modo a evitar erro judiciário – tanto pode ser atingida por circunstâncias factuais e legais, – como no primeiro caso –, quanto pela associação dos dispositivos legais com as regras de experiência – no segundo. No entanto, as regras da experiência, tão somente, não podem ser utilizadas em desfavor do indiciado ou acusado, sob pena de ferimento do princípio da legalidade e risco de erro judiciário.

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