São ingentes os desafios da advocacia brasileira no atual contexto político, econômico e social. Não é exagero dizer que o período de turbulência política que perpassou a meritória e altiva gestão do ex-presidente do Conselho Federal da OAB Cláudio Lamachia prossegue e se intensifica na gestão profícua e vertical do atual presidente Felipe Santa Cruz. Os sucessivos atentados e violações perpetrados pelo governo Bolsonaro e por integrantes do Poder Judiciário, notadamente no âmbito da operação Lava-jato, contra as prerrogativas dos advogados e as credenciais históricas da OAB na defesa dos predicamentos do Estado democrático de Direito tornaram-se questões institucionais de superlativa importância e que põem em risco os mais relicários valores republicanos. Nesse ambiente de retrocesso civilizatório e de mentiras amplificadas nas redes sociais pelas milícias digitais e por personalidades messiânicas, enveredamos pelo terreno perigoso do golpismo contra as instituições democráticas e os direitos fundamentais sublimados na Constituição de 1988. 

O mesmo se diga com relação aos falsos antagonismos urdidos pelas mistificações enganosas para solapar a verdade e menosprezar as oposições críticas a esse estado de perplexidades e incongruências. Por exemplo: denunciar os abusos, ilegalidades e a condenável promiscuidade nas comunicações entre o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dellagnol, que a cada dia se vão revelando mais surpreendentes e censuráveis na Operação Lava-jato, significa ser contra o combate à corrupção. É inaceitável que um juiz no exercício da jurisdição penal, que exige imparcialidade e respeito ao princípio da paridade de armas entre a acusação e a defesa, possa indicar testemunha ao órgão do Ministério Público incumbido da denunciação, ou antecipar ao mesmo o teor de decisões que irá proferir, ou orientar o procurador da República a recusar a delação de um político (no caso, do ex-deputado Eduardo Cunha),  ou desistir de uma investigação sobre outro político (no caso, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), ou, ainda, pleitear a substituição no processo penal de uma procuradora, supostamente por deficiência na formulação do interrogatório. 

Por outro lado, ser contrário às barbaridades vocalizadas pelo presidente Bolsonaro, seus filhos, seus ministros da Educação e das Relações exteriores, sem esquecer o “bruxo da Virgínia”, Olavo de Carvalho, é ser a favor do esquema de corrupção endêmica que enlameou o país. Não há como esquecer, aqui, que foi a OAB que ajuizou no Supremo Tribunal a ADI 4.650 para impedir e declarar inconstitucional o financiamento de candidaturas a cargos eletivos por grupos empresariais, e que foi a mesma Ordem que desde sempre exortou a criminalização do Caixa 2 no financiamento das campanhas eleitorais. Além disso, ser crítico à Reforma Trabalhista ou à Reforma da Previdência, ainda que com relação a aspectos pontuais, é ser a favor da falência do Estado brasileiro. Como se essas questões não comportassem controvérsias e não tocassem com a subsistência e a dignidade salarial de ampla parcela da população e do povo trabalhador. Ademais, ser contra o punitivismo desmedido, o encarceramento em escala e a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é ser a favor da desordem e da insegurança pública. Isto quando se sabe que o Brasil já possui a terceira população carcerária do planeta, depois dos Estados Unidos e da China, e que as condições de nossas penitenciárias e cadeias públicas são degradantes, com presídios superlotados e dominados por facções criminosas, os quais, longe de ressocializar o preso, mais o afundam na criminalidade e na violência sem tréguas. As estatísticas prisionais mostram que a grande maioria dos presos no Brasil são negros, pobres e pessoas abandonadas à própria sorte desde a infância indigente. 

Mais grave é o discurso do ódio e da visão totalitária de padrões hegemônicos, que exclui as diferenças e institucionaliza os regimes de “apartheid” e a barbárie oficial. Bem se sabe que, sob a lógica da intolerância, não há limite para o massacre a ser infligido aos contrários em sua sanha de faxina étnica, ideológica e cultural. Justamente aí residem as agressões contra a comunidade LGTB, as mulheres, os índios e os negros, a exigir a rigorosa criminalização da homofobia, do feminicídio e das odiosas práticas de racismo. Como elucida Hannah Arendt, “a luta pela eliminação de toda realidade rival não totalitária, eis aí a tônica dos regimes totalitários” (em “As origens do totalitarismo”).

Em tudo isso se observa, nestes tempos de pauperismo de ideias, um apagão da inteligência crítica em nosso país. A pior forma de mediocridade é a que destrói o avanço civilizatório e condena o futuro. Existe, sim, a mediocridade neutra, ingênua e resultante do déficit educacional, por isso mesmo recuperável pelas intervenções educativas e pela atenção especial da sociedade. Mas a mediocridade calcada em preconceitos, na sabotagem das virtudes igualitárias e na visão autoritária excludente do próximo, essa não tem jeito: cria e aprofunda o ambiente de confronto ideológico, impossibilita o diálogo construtivo, corrói a solidariedade social e arremessa a nacionalidade no bueiro da história e no vale-tudo da existência. Infelizmente, esse é o atual cenário da política no Brasil. A eleição de Bolsonaro, sem compromisso axiológico com um projeto altivo e generoso de nação, foi um incidente fatalista decorrente de uma conjuntura perversa: a destruição da esperança e a indignação geral causada pelo “lulapetismo” e os partidos contaminados pela politicagem dos interesses menores e nada republicanos. Estes, pelo descaminho da corrupção e da soberba partidária, jogaram fora um projeto democrático de inclusão social ansiado pelo povo brasileiro desde os estertores da ditadura em 1985 e alimentado pelos ideais da Constituição democrática de 1988.  

Não adianta chorar o leite derramado. Nas eleições de 2018, ao extremo da decepção popular e do assassinato da ética pública e privada, a nação respondeu, majoritariamente, com o extremo da radicalização militarizada, armamentista, da antipolítica e com incertos parâmetros da direita ultraliberal. Saímos do abismo e caímos no abismo. Não houve clima para ponderações e mediações eleitorais razoáveis e minimamente sadias. Tudo muito rápido, aos trancos e barrancos, o que excluiu ou anestesiou a consciência crítica da nação. É como se a facada no Bolsonaro, a explosão da criminalidade nas cidades e a indignação geral contra a corrupção justificassem qualquer alternativa de contraponto à candidatura do PT nas eleições de 2018. A ponto de um governo clânico-familiar, sem qualquer currículo republicano e devoto da repressão ditatorial pós-64, adotar, como guru esotérico, um tal Olavo de Carvalho, carreirista da enganação, misto de Rasputin e João de Deus, não de Abadiânia, mas dos confins da Virgínia. O “mago de Richmond” tornou-se o ideólogo de fanfarra do governo e da família Bolsonaro. Saudades do Chacrinha, do Costinha e da Dercy Gonçalves. Além de puros, eram intérpretes da alma simples brasileira. Esse outro é a cloaca do xingamento e da impostura debochada no atual deserto de ideias que é o Brasil. A ponto de ser rechaçado, em justa reação às agressões arrotadas por esse farfalhão do bolsonarismo, pelos oficiais militares da reserva que hoje protagonizam parcela do governo (embora muitos deles, como os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Luiz Eduardo Rocha Paiva, já exonerados e difamados por Bolsonaro e seus filhos, com alguma dose de equilíbrio e bons serviços prestados à nação). É o contraste entre a paranoia sem peias e algum resíduo de bom senso e civilidade. 

O discurso aloprado da intolerância, misógino, homofóbico, antiindigenista, antiambientalista, antisolidarista e contrário às diversidades resultou, entre nós, no Trumpismo tupiniquim que hoje nos envergonha mundo a fora. Essa pauta de obscurantismo e de antidiscurso é vazia de sentido e atenta contra as conquistas da política da civilização a que alude Edgard Morin (“Pour une politique de civilisation”, editora Arléa, Paris), que simboliza a convivialidade edificante e promove a consciência das necessidades poéticas, espirituais e intangíveis dos seres humanos, sem o que o curso da vida seria insuportável e um desalento sem fim. Não se trata mais de ser, ou não, conservador, o que traduz opção legítima dentro do espectro democrático. O quadro é bem mais grave: estamos diante do reacionarismo violento que desdenha a política, a educação, a filosofia, a sociologia, o altruísmo, as diferenças e o direito de sonhar. A declaração de Olavo de Carvalho sobre o papel da negritude no Brasil é simplesmente horrorizante: “Os intelectuais de elite (...) são culpados de cultivar no povo negro, por oportunismo ou perversidade, ilusões quase demenciais quanto ao valor da cultural afro. A contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo (...) foi uma contribuição material, não cultural”. Um líder da seita racista Ku Klux Klan não diria melhor. Ou seja: não existiram Luís Gama, José do Patrocínio, Cruz e Souza, Machado de Assis, Lima Barreto, Milton Santos, Abdias do Nascimento, Pinxiguinha, Cartola, Caymmi, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Zezé Motta, Dona Ivone Lara e tantos outros afrodescendentes de várias gerações que estão na raiz do admirável sincretismo cultural do nosso país. 

Penso que estamos a viver uma espécie de “Janismo” fora de época, piorado, mais perigoso, mais ameaçador e sem a inteligência, brilhante embora estéril, do velho Jânio. Indago: qual o legado de Jânio Quadros e de seu moralismo de fachada para a história do Brasil? Talvez só as frases anedóticas, a imagem das pernas tresloucadas e, por fim, a renúncia irresponsável e etílica. Daí o desabafo de Afonso Arinos, seu ministro das Relações Exteriores: “o Jânio é a UDN de porre”. E qual será o legado de Bolsonaro para as instituições políticas do Brasil? Creio que não é difícil imaginar...

Mais preocupante ainda é constatar a utilização da mentira como método de governo e de mistificação das realidades ao estilo Donald Trump, que espalha “fake news” a torto e a direito para gerar notícia e confundir a opinião pública. Segundo o jornal Washington Post, desde o início do mandato o presidente norte-americano já divulgou mais de dez mil informações falsas de todo tipo. Bolsonaro, que é admirador declarado de Trump, vai pelo mesmo caminho. Inaugurou na campanha eleitoral a receita de tuítes incendiários e “fatos alternativos” para fins da captura emocional de um eleitorado desiludido com a política. Já no exercício do mandato, cada fala presidencial traz a tônica da agressividade, de vitupérios a esmo e de toda sorte de inverdades. Assim foi com a afirmação de que não existe fome no Brasil, quando se sabe, com base no relatório isento da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), que o Brasil possui 5,2 milhões de pessoas em impenitente estado de carência alimentar. O mesmo se diga com relação ao uso de agrotóxicos: afirmou o presidente que nosso país ocupa uma das últimas posições no planeta como consumidor de pesticidas. Bem ao contrário, o relatório da FAO denuncia que o Brasil é um dos maiores usuários de agrotóxicos no mundo. É certo, nesse sentido, que só no primeiro semestre de 2019 foram liberadas para consumo 239 novas substâncias. Depois, ao ser anunciado pela mídia que o desmatamento de florestas cresceu 60% em junho, Bolsonaro rebateu os dados oficiais e afirmou que o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão, um cientista da mais alta respeitabilidade, reconhecido internacionalmente, estaria a serviço de “alguma ONG” xiita ambientalista. 

Lamentáveis também foram as informações falseadas sobre o drama sofrido na ditadura militar pela valorosa jornalista Miriam Leitão, vítima de brutais torturas num quartel do Exército, então relatadas à Justiça Militar. Bolsonaro disse que a jornalista participou de ações armadas contra a ditadura e da Guerrilha do Araguaia, o que jamais aconteceu. Outro exemplo de insanidade verborrágica: ao chegar em Israel no mês de abril, embarcou no delírio ignorante do chanceler Ernesto Araújo e afirmou que o nazismo foi uma ideologia de esquerda. Tudo porque o partido hitlerista se chamava “Partido Nacional-Socialista da Alemanha”. Na visita ao Yad Vashem, museu dedicado às vítimas do Holocausto, nosso estabanado presidente deixou de ler a placa de informação aos visitantes de que o nazismo foi uma das expressões do “crescimento de grupos radicais da direita na Alemanha”, apoiado por poderosos grupos empresariais do alto capitalismo germânico, como a Mercedes Benz. Como bem comentou o jornalista Bernardo Mello Franco, “a insistência em descrever o nazismo como ideologia de esquerda mostra que Bolsonaro cultiva uma relação peculiar com a realidade. Se os fatos o contrariam, pior para os fatos” (em O Globo, edição de 3/4/2019).

Enfim, por insegurança paranoica ou ignorância atávica, ou ambas, o atual governo da República despreza as representações da sociedade civil, consideradas porta-vozes do marxismo cultural. Bem por isso, é “terrivelmente” contra os colegiados e conselhos sociais que participam da administração pública conjugando representantes dos mais variados segmentos. A ponto de haver extinto centenas de entidades com tal natureza multirepresentativa mediante o Decreto nº 9.759/2019, de resto notoriamente inconstitucional como já declarado pelo STF na ADI 6.121. Ainda recentemente, com a edição do Decreto nº 9.926/19, Bolsonaro reduziu de 31 para 14 membros a composição do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), extinguindo sumariamente a representação da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Federal de Medicina nesse importante colegiado. Isto sem mencionar nos sucessivos ataques desferidos contra a OAB, contra o nosso altivo presidente Felipe Santa Cruz e seu saudoso pai, vítima da ditadura militar, contra o indispensável Exame de Ordem e os advogados em geral. Certamente, porque atemoriza-o o conhecimento, a independência, a têmpera e a indômita defesa da Constituição, máxime dos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e das isonomias sociais protagonizadas pelo nosso órgão de classe e pela nobilitante estirpe dos advogados, com base no artigo 44 do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/94). 

Nesse ambiente de preconceitos e revanchismo sem par, cumprirá à OAB, que não é uma entidade partidária, mas sim comprometida com a defesa da Constituição e do regime democrático, participar junto aos poderes da República do amplo debate sobre as reformas de que necessita o nosso país para restaurar o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e as agudas desigualdades sociais e regionais, como determina o art. 3º da Constituição Federal. Estou a falar, especialmente, da reforma da Previdência Social, da reforma do sistema político e eleitoral, da reforma tributária e do aprimoramento legislativo para a edição e execução de políticas públicas de inclusão social, de afirmação da cidadania e de reconstrução da nação com supedâneo na ética pública e privada e com indesviável acatamento dos parâmetros constitucionais. 

Voltando ao presente, a pobreza de espírito e a emergência da estupidez são de tal ordem que viveremos em crise até o suspiro final do mandato presidencial. Bolsonaro, seus guris inopinados e os “Olavetes” puxa-sacos, à falta de um projeto esclarecido e construtivo de nação, só farão realimentar o antidiscurso da campanha eleitoral permanente, que fragiliza as institucionalidades, os poderes da República, os direitos humanos e as reservas de generosidade do povo brasileiro. Não por acaso, os ministros da Educação (Ricardo Vélez Rodríguez e, depois, Abraham Weintraub) e das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), todos ventríloquos do pseudo filósofo Olavo de Carvalho (“O jardim da aflições”) e adeptos da visão perenelista que inspirou o nazi-fascismo na Alemanha e na Itália, tornaram-se arautos da vanguarda do atraso e campeões do ridículo. Com base na doutrina ultraconservadora de René Guénon (“A crise do mundo moderno”) e de Julius Evola (“Homens entre as ruínas”, 1953), todos eles encarnam o esoterismo reacionário, típico das seitas ocultistas, que excomunga a conspiração do comunismo planetário e prega o extermínio do “marxismo cultural”. É um discurso ultrarradical e simplista, já ultrapassado e típico do período da Guerra Fria. 

Para esse viés inflexível de pensamento e de determinismo histórico, a cultura da transigência democrática seria a grande responsável pela crise da Modernidade. Por isso mesmo, deveria ser extirpada, juntamente com as instituições que a professam. Isto explica os ataques às universidades, tidas como ambientes de balbúrdia. Daí a advertência paranoica de Olavo de Carvalho – de que “as universidades são instrumentos do crime organizado para perverter as vocações e gastar dinheiro público”. Esse tipo de mentalidade é refém do monólogo maniqueísta que não tolera o rito democrático do confronto de ideias e ideais. Anseia por um governo autoritário, de cunho personalista e que imprima uma marcha à ré na modernidade e suas conquistas, notadamente os direitos humanos, sociais e culturais, as igualdades raciais e de gênero, a identidade sexual, o contraditório de pensamentos e a abolição dos preconceitos. E temos de aturar (até quando?) que Hitler e os nazistas eram socialistas!... Tem-se aí um processo mal-intencionado, disruptivo das regras do jogo democrático, hoje manipulado pela marginalidade digital nas redes sociais e voltado para a “deculturação” da política e implosão da lucidez (cf. Jean-Pierre Le Goff, “Malaise dans la démocratie”, ed Pluriel). O que mais impressiona no atual cenário brasileiro é a tolerância e o silêncio das elites, desde sempre depositárias do pensamento e dos privilégios dominantes, em face desse espetáculo de mediocridade destrutiva.  

* Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade de Paris II, conselheiro federal da OAB. Colunista convidado desta semana no Portal da OAB/RJ. 

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